São Paulo, Domingo, 21 de Novembro de 1999
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QUESTÃO AGRÁRIA
Terras compradas pelo governo são inviáveis para o plantio e foram superavaliadas nas operações
Incra desapropria "desertos" no Ceará

Jarbas de Oliveira/Folha IMagem
Fazenda no Município de Cratéus (CE), em processo de desertificação, que foi desapropriada


PAULO MOTA
da Agência Folha, em Fortaleza

O Incra desapropriou fazendas para reforma agrária em áreas em desertificação no Ceará, de 1996 a 1999, pagando valores muito acima dos de mercado. Parte das terras são inviáveis para assentar lavradores. Várias desapropriações beneficiaram políticos e fazendeiros, segundo a Procuradoria da República no Ceará.
Levantamento feito pela Agência Folha revela que 24% das terras desapropriadas na atual gestão do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) no Ceará estão situadas em regiões em processo avançado de desertificação.
Nas desapropriações, o valor pago pelo Incra foi até 62% maior do que o praticado no mercado. Mesmo assim, em alguns casos, os proprietários recorreram à Justiça para ampliar a indenização e conseguiram aumentar o valor em até 402%.
As irregularidades estão sendo apuradas em inquérito da procuradoria, que já promoveu três ações civis e três ações de improbidade contra o superintendente do Incra no Ceará, Luiz Vidal Filho, e outros dez funcionários da instituição.
Vidal está no cargo desde março de 1996. De lá pra cá, o Incra já fez 166 desapropriações no Ceará, que consumiram R$ 53,7 milhões.
Auditorias do TCU (Tribunal de Contas da União) e do próprio Incra comprovaram parte das acusações que estão sendo apuradas no inquérito aberto pela procuradora da República, Nilce Rodrigues.
Segundo a procuradora, o Incra, na gestão de Vidal, transformou-se em uma espécie de "corretora de imóveis", na qual o interesse dos proprietários de venderem suas fazendas prevaleceu sobre a utilidade dessas áreas para fins de reforma agrária. Isso caracterizaria uma infração de "desvio de finalidade".
"As terras no Ceará estão desvalorizadas devido à pobreza de seus solos, à falta de crédito nos bancos e à cobrança de ITR (Imposto Territorial Rural). O Incra virou o melhor comprador dessas terras", disse Nilce Rodrigues. "São áreas que dificilmente alguém compraria."
A procuradoria abriu o inquérito porque o Incra não estava enviando os processos de desapropriações para a análise de procuradores, conforme determina a legislação. Com a análise dos processos, outras irregularidades foram detectadas.
A fazenda Nazário, em Crateús, por exemplo, foi desapropriada em 1996 por R$ 204.860,52, com a meta de assentar 70 famílias. Em outubro passado, havia apenas nove famílias assentadas na área.
Outras 95 famílias passaram pela fazenda, mas não resistiram. Antes da desapropriação, técnicos do Incra alertaram que a fazenda era imprestável para reforma agrária.
A Agência Folha teve acesso ao balanço de 93 assentamentos em áreas desapropriadas na gestão Vidal. As áreas têm capacidade para assentar 5.439 famílias, mas sobram 1.202 vagas, porque não há famílias interessadas. Outras 1.872 famílias se cadastraram para essas áreas, mas desistiram frente às dificuldades.
Luiz Vidal Filho foi indicado para a Superintendência do Incra no Ceará pelo deputado Pinheiro Landim (PMDB). Das áreas desapropriadas em sua gestão, 32 pertenciam a deputados, prefeitos e ex-deputados de partidos da base aliada do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB, PFL, PMDB e PPB) e até do PPS.
Duas das dez fazendas mais caras desapropriadas pertencem ao grupo Edson Queiroz, presidido por Yolanda Queiroz, sogra do governador Tasso Jereissati (PSDB) e tia do senador Luiz Pontes (PSDB-CE). Yolanda e Jereissati são rompidos politicamente.
A desapropriação da fazenda Atrás dos Morros, em Granja, sintetiza, segundo a procuradoria, o esquema de irregularidades praticado na gestão Vidal. Pertencente ao ex-governador e atual deputado estadual Francisco Aguiar (PPS), a fazenda, de 711 hectares, foi vistoriada por três equipes do Incra antes de ser desapropriada.
A primeira afirmou em laudo que a desapropriação era inviável, porque a fazenda era "composta de terras extremamente pobres, não detentora de recursos hídricos, e, ademais, inexiste tensão social e interesse por parte dos rurícolas em ocupar a área". A segunda equipe reafirmou o diagnóstico e pediu o arquivamento do processo de desapropriação.
Vidal insistiu na desapropriação e mandou para a área uma terceira equipe, que, mesmo sem ter atribuições técnicas para fazer vistoria, recomendou a desapropriação da fazenda.
Outra evidência de que a fazenda era inviável para reforma agrária é o fato de que a Justiça avaliou que seria necessário um investimento de R$ 210 mil para tornar produtiva a fazenda -cujo valor para desapropriação foi de R$ 91.472,80.
Apesar de ter sido o próprio Aguiar que procurou o Incra para oferecer a fazenda, ele recorreu à Justiça depois da desapropriação para elevar o valor da indenização. O perito da Justiça Federal avaliou o imóvel em R$ 107.149,17. A procuradoria afirma que o preço de mercado é de R$ 70 mil.
O caso da fazenda Atrás dos Morros não é exceção. A procuradoria apurou que a maioria das áreas desapropriadas foram ofertadas pelos proprietários, sem que houvesse necessidade social de terras para assentamento nas localidades.
A fazenda Damião, de 13.942 hectares, em Santa Quitéria, foi desapropriada por R$ 2 milhões. O valor pago por cada hectare de terra nua foi de R$ 73.
A Empresa de Assistência Técnica e Rural do Ceará diz que o valor de mercado do hectare nas vizinhanças da fazenda Damião fica em torno de R$ 45. O Incra ainda pagou R$ 1.003.375,80 por benfeitorias na propriedade, algumas inúteis para reforma agrária, como uma pista de pouso. Parte dessas benfeitorias foi construída com verbas subsidiadas pela Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste).
A fazenda Saco Verde, em Irauçuba, foi desapropriada por R$ 1 milhão.
O detalhe é que Santa Quitéria e Irauçuba sofrem um processo dedesertificação que já atinge mais de 50% de seus territórios. O Ministério do Meio Ambiente considera a região como um dos epicentros da desertificação no país.



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