São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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SOMBRA NO PLANALTO

Decreto assinado por Lula e Dirceu em outubro criou grupo para tornar jogo legal

Casa Civil articulava plano de legalização dos bingos

MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O escândalo Waldomiro Diniz cortou a poucos metros da praia uma onda que levaria à legalização dos jogos de bingo no país. Resultado de uma longa negociação coordenada pela Casa Civil e com o apoio entusiasmado de empresários do bingo, as novas regras deveriam liberar os jogos com a justificativa oficial de aumentar a arrecadação de tributos.
"Virou um vespeiro", disse o subchefe de Coordenação da Ação Governamental da Casa Civil, Luiz Alberto dos Santos, um dia antes de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciar um aparente giro de 180 graus nos planos do governo, por meio da medida provisória que proíbe o funcionamento dos bingos. Na prática, o giro mesmo depende agora do Congresso Nacional.
Horas antes do anúncio de Lula, o presidente da Abrabin (Associação Brasileira dos Bingos), Olavo Sales da Silveira, acreditava que o projeto seguiria adiante apesar do escândalo: "Não vejo espaço para o governo recuar. Para mim, levantaria suspeita se recuasse".
Num exagero de retórica, Sales avaliou que barrar os bingos só interessaria a uma pessoa nessa altura do campeonato: o empresário Carlos Ramos, o Carlinhos Cachoeira, interlocutor de Waldomiro Diniz na fita em que o ex-assessor parlamentar do Planalto foi flagrado em 2002, quando trabalhava para o governo Benedita da Silva (PT-RJ), cobrando contribuições de campanha. O negócio de Cachoeira não seria o bingo, mas um concorrente desse: os sistemas de loteria on-line.
Sales esqueceu que os maiores opositores dos bingos são os procuradores que vêem no jogo um sinônimo de lavagem de dinheiro e de crime organizado.
Desde 2000, quando a chamada Lei Maguito cortou novas autorizações para funcionamento de bingos no país, o jogo atua à custa de liminares concedidas pela Justiça. As últimas autorizações legais expiraram no final de 2002, encerrando um ciclo que começara com a Lei Zico, aquela que liberou o bingo, em 1993.
No ano passado, os bingos já estavam completamente fora do controle do governo. Em 2002, a CEF (Caixa Econômica Federal), responsável até então pela fiscalização, contabilizou a arrecadação de só R$ 116 milhões para atividades esportivas, embora estimasse que os bingos movimentassem mais de R$ 2 bilhões por ano.

Bandeira petista
Antes de Luiz Inácio Lula da Silva chegar ao Planalto, já havia petistas engajados na liberação dos bingos. O mais notável defensor dos bingos no Congresso é o deputado Gilmar Machado (PT-MG), relator do projeto do Estatuto do Desporto, cujo texto libera os jogos e destina parte do dinheiro arrecadado para os esportes.
Machado comparou a situação dos bingos às plantações de soja transgênica. Além de serem dois temas polêmicos, só haveria duas alternativas para o governo Lula nesses casos: aceitar a clandestinidade ou legalizar. Proibir o bingo, segundo ele, estaria fora de questão, ainda que ele mesmo não aposte nas cartelas: "Não jogo, sou evangélico". Então, por quê? "Sou político", afirma.
Pouco antes das eleições de 2002, o PT tentou votar o projeto em regime de urgência na Câmara, sem sucesso. Nessa época, Waldomiro Diniz foi flagrado ao lado de Carlinhos Cachoeira.
Como presidente da Loterj (Loteria do Estado do Rio de Janeiro), ele promovia encontro para discutir o destino dos bingos e se destacava como "defensor ferrenho" da atividade nas mãos dos Estados, segundo registro feito à época no site da Associação Brasileira dos Bingos. A Abrabin nega que Waldomiro tenha participado das últimas negociações, em coro com o Palácio do Planalto e os demais defensores dos bingos.
Com a vitória de Lula, o relator Gilmar Machado voltou a trabalhar com outra grande aliada dos bingos na Esplanada, reconhecida pela Abrabin: Virgínia Mesquita, assessora especial do ministro Agnelo Queiroz (Esporte). Ambos trabalharam afinados com a Abrabin, associação que representa cerca de metade das 1.100 casas de bingo do país.
O presidente Lula nunca escondeu a disposição de regulamentar os bingos. A mensagem que enviou ao Congresso no início do primeiro ano de mandato já registrava a intenção de ter os bingos como fonte de financiamento de projetos do governo federal.
Mas foi com a assinatura de Lula e do chefe da Casa Civil, José Dirceu, em decreto publicado no "Diário Oficial" da União no início de outubro, que a Abrabin começou a cantar vitória. O governo criava ali o grupo de trabalho para cuidar da legalização. "Legalização cada vez mais rápida", comemorou o site da associação.

Controle na Caixa
O grupo chegou a uma proposta de legalização do bingo no início de janeiro. A Casa Civil aproveitou as sugestões do Ministério do Esporte e se ateve ao modelo que punha nas mãos da CEF o controle dos bingos, das autorizações de funcionamento à fiscalização.
A proposta, que não chegou a ser formalizada, exigia capital mínimo de R$ 500 mil das empresas que quisessem atuar com casas de bingos. Máquinas fora desses estabelecimentos seriam proibidas. O sistema da Caixa poderia ficar pronto num período de oito a 12 meses, previu o vice-presidente de Benefícios, Carlos Borges.
"O projeto contraria interesses, ia tirar gente do mercado", comentou o subchefe da Casa Civil. A tese do governo é que interesses feridos na futura regulamentação estariam na origem do episódio Waldomiro Diniz.
"Gostamos disso, a Abrabin apóia", reagiu o presidente da Abrabin. Ele já preparava uma nova campanha publicitária para quando o projeto chegasse ao Congresso, semelhante à veiculada em televisões e revistas no segundo semestre de 2003 e na qual a Abrabin afirma em editorial ter gasto "algumas centenas de milhares de reais".
A campanha da Abrabin inclui pareceres do ex-coordenador de Inteligência da Receita Federal Deomar de Moraes e dos juristas Ives Gandra, Antônio Chaves Camargo e Hermínio Porto e a tentativa de convencimento dos parlamentares. Quanto foi gasto exatamente, Olavo Sales não diz.
Quatro dias antes de estourar o escândalo Waldomiro Diniz, a direção da Câmara recebeu um novo pedido de votação em regime de urgência de mais um projeto de regularização do bingo. Foi apresentado pelo líder do PL, deputado federal Valdemar Costa Neto (SP), e usava mais um apelo para liberar o jogo: o dinheiro arrecadado também ajudaria o combate à fome. Era para reforçar a onda pró-legalização do bingo.


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