São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LANTERNA NA POPA
Sobre proliferação e pobreza

ROBERTO CAMPOS
Em 1800, a Terra tinha 1 bilhão de habitantes. Provavelmente mais do dobro do que tinha em 1500, umas quatro vezes mais do que no tempo de Cristo e cem vezes mais do que no começo da revolução agrícola, há uns 10 mil anos, quando, com mais comida e lazer, começou essa história do "crescei e multiplicai-vos". Em 1927, a bola em que moramos dobrou a população para 2 bilhões, dobrou novamente em 1974, para 4 bilhões, e hoje está pelos 6 bilhões. Terá crescido, por ano, 0,04% até Cristo; 0,06% de então a 1500; 0,2% depois, até 1800; 0,65% de então até 1900; 0,9% neste século, até 1950; e 1,9% a partir de então até hoje.
A população mundial está crescendo 80 milhões de pessoas por ano, e pelo menos por mais cerca de 20 anos os especialistas não esperam reduções significativas da tendência. Hoje, os desenvolvidos representam 20% do total, e os menos desenvolvidos, 80%, sendo que os paupérrimos contribuem com ligeiramente mais do que 10%. Mas, em 2025, os desenvolvidos serão menos de 17%, os menos desenvolvidos, mais de 83%, e os mais pobres dentre esses, quase 13%. Em 2050, quando a geração dos nossos filhos tiver a nossa idade, os atuais desenvolvidos não representarão mais do que 12,4%, e os menos desenvolvidos, 87,6%, aumentando a proporção dos mais pobres para perto de 17,5%. Isso, tomando uma hipótese relativamente modesta, segundo a qual a população total da Terra atingirá 7,3 bilhões em 2025 e 9,4 bilhões em 2050. Pode ser que chegue, respectivamente, a 8,5 bilhões e 10,2 bilhões.
Não há novidade nessas cifras. Mas vamos reduzi-las a taxas simples: hoje, as regiões mais abastadas crescem 0,4% anualmente, os menos desenvolvidos, 1,8%, e os paupérrimos, 2,6%. Não vamos falar dos problemas gerais conhecidos: poluição, degradação ambiental, concentração em bestiais megacentros urbanos, com suas favelas, dificuldades intransponíveis de transportes e qualidade de vida praticamente irrecuperável. Também não é o caso de voltarmos às preocupações quanto à disponibilidade de alimentos. Apesar da fome da China de 1957, que terá custado umas 20 milhões de vidas, e das previsões sombrias de biólogos, nos anos 60, os progressos tecnológicos tornaram possível aumentar a produtividade e evitar crises localizadas extremas.
Do começo da década de 60 até o da de 90, aumentou em todo o mundo o suprimento médio de calorias e melhorou a composição da dieta. Mas, no que se refere aos mais pobres de todos, a melhora foi apenas marginal, de modo que os que mais aceleradamente se reproduzem têm apenas 75% da média mundial de calorias por habitante. E, hoje, 1,3 bilhão de pessoas, mais de 1 em cada 5 dos habitantes do planeta, vive em estado de extrema pobreza (vivendo com menos de US$ 1 por dia), e talvez 1 bilhão não tem acesso a água potável, esgotos, educação e cuidados de saúde.
Nosso assunto, porém, não é rever essas cifras. É outro, e tem a ver com a "globalização". Estamos (o que quer dizer, os povos "em desenvolvimento") enrolados no meio de complicados e confusos processos de enganos, sobretudo de auto-enganos. Embora a média mundial venha melhorando -desde o início da década de 50, a expectativa de vida nos países ricos aumentou uns 40% (de 66 anos para 74 anos), e a dos menos desenvolvidos aumentou 50% (de 40,7 anos para 62,4 anos), o que refletiu melhora da alimentação, das condições sanitárias e da infra-estrutura-, os países relativamente mais pobres, presos no círculo vicioso da sua condição, foram os que menos melhoraram e mais se reproduziram. Um aspecto curioso é que, no contexto europeu, os únicos países em que a expectativa de vida não melhorou (e até retrocedeu) foram os países do bloco soviético, o que confirma minha tese de que o socialismo é anti-social, pois que limita a própria expectativa de vida. O comunismo mata por ideologia, mas é também capaz de matar pela fome, como o fez na Rússia de Stálin, na China de Mao e agora na Coréia do Norte.
Segundo o UNDP, em 1996, 89 países estavam pior do que há dez anos, e em 70 deles os níveis de renda eram menores do que nas décadas de 60 e 70. Mas lembremos que, no começo deste século, na Índia, na China e na maior parte do "Terceiro Mundo", a expectativa média de vida não passava dos 25 anos, menos do que na Europa dos séculos 18 e 19, e mais ou menos a mesma que na Roma antiga (22,5 anos a 25 anos).
A globalização, ao acelerar a pressão competitiva, inevitavelmente coloca sob estresse cada vez maior as articulações mais fracas do sistema. O ciclo da pobreza, que tende sempre a se auto-reproduzir, provoca destruição dos solos produtivos, desmatamento e práticas agrícolas ineficientes (70% dos danos aos solos agrícolas do mundo resultam disso) e acaba associado a baixo nível de educação, criando inadaptabilidade ao trabalho em condições modernas.
Por outro lado, há o problema da urbanização doentia. Em 1950, a população mundial era 20,3% urbana. Em 1995, a proporção já chegava a 45,2%, e, em 2010, deverá andar por 59,2%. E as taxas de urbanização mais altas estão concentradas nas regiões menos desenvolvidas: África, 4,9% ao ano, Ásia, 4,1%, América Central, 4,8%, América do Sul, 4,6%, enquanto na Europa é de 1,7% e na América do Norte, de 2,8%. Assim, as cidades cresceram, de 1950 a 1995, de 700 milhões para 2,6 bilhões, e a maior parte desse crescimento ocorreu nos países em desenvolvimento. No ano 2000, as cidades devem chegar a 3 bilhões e, em 2025, a 4 bilhões. Nós, aqui no Brasil, temos alguma idéia do que significa esse processo, em termos de poluição, criminalidade, desemprego, más condições de saúde, pobreza, falta de habitação e as tensões políticas que tudo isso gera. De 1950 para cá, acrescentamos às cidades, que então pouco passavam de 18 milhões de habitantes, mais uns 100 milhões. Ainda assim, porém, somos uma economia "emergente" bastante privilegiada, em que o setor moderno, na indústria e nos serviços, já atingiu um nível tecnológico e gerencial relativamente alto, com uma satisfatória base de recursos naturais e humanos. Em outras palavras, o Brasil, no contexto das nações, pertence a uma "classe média" já mais para alta. E no Terceiro Mundo, todos os anos, mais quase 40 milhões de pessoas procuram o mercado de trabalho.
Os industrializados não demonstram hoje muita vontade de fazer sacrifícios para ajudar os mais pobres. Na década de 70, houve mesmo quem sugerisse que, com uma redução dos excessos da dieta alimentar dos americanos (v.g., que esses passassem, como na Índia, a comer mais grãos e menos calorias "nobres", proteínas animais e gorduras), seria possível acabar com as carências nutricionais de muitas centenas de milhões de pessoas. Teoricamente indubitável, é claro. Por outro lado, há o aspecto do saco sem fundo, o esforço do doador (isto é, a sua poupança) serviria para aumentar o número de clientes de boca aberta à espera.
O novo ambiente competitivo global pode não ser do agrado de todos, porque gera incertezas e angústias. Mas é um dado objetivo. A curto prazo, ele nos impõe uma receita padrão, forte disposição de poupar, investir e de gerir com máxima eficiência os recursos escassos. A mais longo prazo, precisamos aumentar a qualificação do nosso capital humano, manter a estabilidade e oferecer um horizonte de expectativas tão racional, seguro e amplo quanto possível. O jogo é de campeonato, e por mais que a gente tenha pena da turma da segunda divisão, não dá para ficar com a hipótese perdedora.


Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.