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ELIO GASPARI
Revolução na Light: corta-se a luz e cobra-se pela treva
Eliane Alcântara de Oliveira
tem 32 anos, veste modelo 40,
vive em Caxias, no Estado do
Rio, e sua vida contém duas histórias, uma de sucesso e outra
de desgraça. Elas parecem diferentes, mas talvez sejam uma só.
Aos 19 anos, Eliane empregou-se no Bamerindus e trabalhou vários anos como secretária. Como não tinha hora para
sair, trocou de seção e arrumou
tempo para se formar em letras.
Em 1992, aos 26 anos, ficou desempregada. Recebeu uma indenização equivalente a R$ 10 mil.
Eliane foi à luta. Tornou-se
um caso exemplar daquela tenacidade que o tucanato apresenta
como o triunfo da audácia empreendedora dos cidadãos diante da reestruturação da economia nacional. Comprou quatro
máquinas e começou a costurar
camisas nos fundos de sua casa.
Começou produzindo 200 peças
por mês. Enchia a mala do carro
e saía vendendo aos amigos e
ex-colegas de trabalho. Passou
um ano sem conseguir tirar dinheiro da operação. Fez clientela com uma loja, arrumou freguesia, comprou mais máquinas, contratou costureiras e em
1995 estava produzindo 2.000
camisas por mês. No ano seguinte, alugou um galpão de 300
m2, à beira da rodovia Washington Luís, com mato na
frente e uma igreja ao lado.
Na primeira semana de dezembro passado, a secretária
que virou empresária abastecia
uma rede de seis lojas e mantinha sete núcleos de costureiras
trabalhando em suas casas.
Eram 36 pessoas, mais 63 sacoleiras vendendo as mercadorias.
Nessa escala, uma confecção pode faturar uma média de R$ 100
mil por mês, lucrando entre
20% e 40% (dependendo dos calotes que leva). Fazia um curso
de estilismo na Faculdade Cândido Mendes e explorava uma
linha de couro, jeans e malhas.
Sua casa tinha dois carros, comprou um pequeno apartamento
em Cabo Frio e conservava perto de R$ 40 mil de capital de giro. Estava no pique da produção
de fim de ano, cortando as peças do chamado "branco do verão".
Às 14h30 do dia 8 de dezembro chegou ao seu galpão um
carro da Light. Queriam examinar o relógio. Veio acompanhado por policiais do 61º DP.
(Dois dias antes, a Light, numa
espetaculosa operação, informara que a mansão dos Peixoto de
Castro, cujo sobrenome identificou uma das maiores fortunas
do Brasil, bebia energia elétrica
furtada à empresa por meio de
um dos famosos "gatos".)
O funcionário da Light abriu a
caixa da confecção e, a seu juízo, registrou duas irregularidades: um fio desligado e o selo de
chumbo do equipamento, viciado. O gerente passou oito horas
na delegacia. No dia seguinte, às
8h30, um perito do Instituto
Carlos Éboli abriu o lacre que
havia sido posto na caixa de
energia e examinou o relógio.
Seu laudo demoraria algum
tempo. A mãe de Eliane soube,
pelo rádio, que a filha era acusada de furto de luz. No dia 12 de
dezembro, a Light cortou a
energia da confecção. Isso significou a paralisação do processo
de corte dos panos e interrompeu o fornecimento de serviço à
rede externa de costureiras.
Dias depois, um sócio de Eliane foi à Light e soube que a
energia só seria religada se pagasse R$ 14 mil, correspondentes ao valor da energia furtada,
multa e juros. (Não há papel
que comprove a cobrança desse
valor.) Um documento interno
da Light sustenta que a confecção furtava energia havia pelo
menos 16 meses, pois seu consumo real estava 33% abaixo do
previsto. Em dinheiro, era coisa
de R$ 120 por mês.
Sustentando que nunca roubou nada de ninguém, assim como jamais tomou dinheiro emprestado em banco nem teve dívida atrasada, a secretária que
virou empresária resolveu brigar. Nem ela aceitava pagar,
pois isso significaria reconhecer-se culpada, nem a Light admitia religar a luz. Assim, no
inicio de fevereiro, Eliane foi à
Justiça.
A essa altura já se consumara
sua desgraça. A confecção perdeu todo o faturamento de fim
de ano. Demitiu 11 funcionários,
deu aviso prévio a outros 14 e
ganhou uma ameaça de morte.
Perdeu o capital de giro, foi ao
Banco do Brasil para conseguir
um financiamento e ouviu que
seu negócio era de alto risco.
Nem com garantias imobiliárias
haveriam de lhe emprestar dinheiro. (Alô, alô, ministro Paulo
Paiva, aquela reunião no Palácio
do Planalto para tomar medidas
de emergência contra o desemprego era pastiche. Crédito no
Banco do Brasil do doutor Paulo
César Ximenes quem tem é o
deputado Sérgio Naya).
No dia 5 de fevereiro, Eliane
bateu à porta da 2ª Vara Cível
de Duque de Caxias. (Para quem
gosta de falar mal de juiz, um
aviso: em Caxias, a Justiça foi
rápida.) Dois dias depois a Light
foi citada pela juíza Natacha
Fontes Machado. Tinha cinco
dias para responder, mas levou
dez para fazê-lo. Perder um prazo desses não é coisa que faça
justiça ao Departamento Jurídico da Light, em cujo plantel colecionam-se tantos sobrenomes
ilustres que caminhar por suas
petições parece ser um passeio
pelas ruas com nome de gente
famosa: Prudente de Moraes,
Souza Aguiar, Fonseca Costa,
Sette Câmara ou Bandeira de
Mello. Em sua defesa, a Light
informou que o relógio do galpão fora examinado pela primeira vez em outubro, e as irregularidades foram mostradas a
uma funcionária da confecção,
"a qual apôs o seu ciente, conforme cópia em anexo". Impreciso, porque a rubrica da funcionária está datada de 8 de dezembro. Outro documento da
Light informa: "Data de constatação da irregularidade:
8/12/97".
A Light informou que "houve,
de forma irrefutável, a prática
de fraude" e pediu à juíza que,
de acordo com a "prova dos autos", negasse a medida cautelar.
Informava também que fora lesada em R$ 3.512.
Os doutores da Light talvez
não gostem de ir a Caxias. Se tivessem ido à delegacia que mobilizaram para acompanhar sua
visita espetacular à confecção de
Eliane, teriam encontrado, no
meio do inquérito policial, o
laudo do perito do Carlos Éboli.
Se tivessem ido no dia 26 de fevereiro, quando a juíza leu a
sentença, poderiam ter visto o
laudo nos autos do processo. Ele
informava o seguinte:
- Os peritos constataram, como única irregularidade no sistema, o fato de uma das fases ter
o terminal frouxo (fio cor-de-rosa). Concluíam que o medidor
de energia da confecção "não
apresentava irregularidade que
pudesse caracterizar haver ali
um furto de energia elétrica,
pois o fio de cor rosa frouxo
não interrompia a marcação dos
medidores".
Diante disso, a juíza fez o que
os doutores da Light sugeriam.
No dia 26 de fevereiro, de acordo "com a prova dos autos", ordenou-lhe que religasse a energia da confecção de Eliane.
Mais: estranhou que a empresa,
tendo desligado a luz em dezembro, continuasse cobrando
pelo fornecimento de energia.
Isso mesmo. Ela está cobrando
R$ 355,12 pelo consumo de janeiro. A Light começou a quebrar a secretária que virou empresária no dia 12 de dezembro,
quando lhe cortou a luz. A 26 de
fevereiro era público que estava
desmentida e preliminarmente
derrotada em juízo. Bastaria que
trabalhasse direito e exercitasse
o sentimento da misericórdia
para religar a luz, tão logo
quanto lhe fosse possível. Nada
disso. A energia só foi religada
no dia 5 de março, quando o inquérito policial já fora arquivado, porque, segundo o delegado
que o abriu: "Faleceu a prova
técnica para ratificar o delito".
(O processo continua, para alegria da galera.)
Até agora, o episódio produziu
uma só prova de má conduta,
documentada, cabal e irretocável. Ela está com a Light, que
cobrou a Eliane algo como R$
700 por dois meses de energia
que nunca entregou. Sua nota
fiscal informa que a leitura do
relógio apontou um consumo
de 2.080 quilowatts em janeiro.
O dia em que o funcionário da
Light que lê relógio parado for
depor em juízo será um marco
na história da indústria de fornecimento de energia. Se algum
restaurante mandar ao doutor
Michel Gaillard, presidente da
empresa, duas contas de jantares que não comeu, ele haverá
de entender o que vem fazendo
em Caxias. A prepotência da
Light para morder os outros e a
sua preguiça para justificar-se
em juízo transformaram o caso
numa aula de economia política.
A Light impôs a uma empresária uma penalidade que sabidamente haveria de levá-la à garra.
Para ir buscar R$ 3.512 a que
julga ter direito, desempregou 11
pessoas, transtornou a vida de
63 sacoleiras e vai desempregar
outras 14. Tudo bem, pois a
Light não está aí para fazer justiça social. Seu negócio é vender
energia, ganhar dinheiro e dividir o seu lucro entre os acionistas. Nessa hora, algum santo
zangado resolveu pregar uma
peça ao andar de cima.
Sem faturamento, Eliane está
suspendendo os pagamentos aos
fornecedores. Nesta terça-feira
vence um pré-datado de R$
7.980 que entregou à tecelagem
Vicunha. E de quem é a Vicunha? Do empresário Benjamin
Steinbruch. Steinbruch é o presidente do Conselho de Administração da Light e um de seus
maiores acionistas. Defende a
colocação de um brasileiro (ou
um javanês que conheça as características da sociedade brasileira) na presidência da Light.
Steinbruch foi a única pessoa
do circuito que se interessou pelo caso da pequena confecção de
Caxias. Como Eliane organizou
dois dossiês narrando sua desdita e lhe enviou um, ele telefonou-lhe no fim da tarde de
quinta-feira, informando-a de
que verificaria o que aconteceu
e remediaria o que fosse possível. (Alô alô, doutor Bejamin, o
pessoal da Vicunha não quer segurar o cheque da Eliane. Vê se
descasca essa.)
Por que a história do sucesso e
a história da desgraça de Eliane
podem ser uma só? Porque elas
mostram que é possível que
uma secretária desempregada,
com 26 anos de vida e uma indenização no bolso, venha a se
transformar numa pequena e
bem-sucedida empresária do
andar de baixo. Mas ensina também que, nesse pedaço do Brasil, ninguém está livre da capacidade esmagadora do andar de
cima de fazer o que bem entende. No andar errado, as coisas
tendem a acabar dando errado.
A Light quer mostrar que tem
força para destruir os negócios
e/ou a reputação de quem lhe
furta energia. É bom que o faça.
Com Eliane ela quis conseguir
mais. Mostrou que pode quebrar as pernas de uma ex-secretária que, segundo o laudo dos
peritos (depositários exclusivos
de fé pública para dizer se há ou
não furto de energia) não estava
furtando coisa alguma. Grande
vitória, doutor Gaillard.
ENTREVISTA
Raul Portanova (62 anos, com 41 de militância
no direito previdenciário, em Porto Alegre)
O senhor vem dizendo que a reforma da Previdência está sendo
discutida com números falsos,
destinados a enganar os parlamentares e iludir a opinião pública. Pode provar isso?
A maior falácia está na manipulação da expectativa de vida do
brasileiro, que é de 68 anos, com a
idade com que morrem os contribuintes do INSS. Eu desafio o ministro Reinhold Stephanes a informar, com os números dos
computadores da Dataprev, a
idade média da morte dos seus
contribuintes. Em 1962, o instituto de previdência dos industriários fez um cálculo nacional. Seus
segurados morriam, na média,
com 52 anos. Eu procurei refazer
esse cálculo com os números do
INSS de Porto Alegre, uma das cidades com melhor qualidade de
vida do Brasil. Em agosto de 1990,
os segurados morriam, em média, aos 56 anos. Em janeiro de
1991, aos 57. Esta é mais ou menos
a média da morte do contribuinte
do INSS, que não é funcionário
público, deputado, senador ou
professor aposentado da Universidade de São Paulo. Com a reforma, ele não consegue se aposentar antes de completar 60 anos.
Há outra?
A segunda falácia, bem mais repetida, é a confusão deliberada
entre benefícios e aposentadorias. O ministro Stephanes diz
que o INSS arrecada de 34 milhões de trabalhadores e paga a 17
milhões de beneficiários. Este número está desonestamente inchado. Ele embute contas que nada
têm a ver com as aposentadorias e
pensões do INSS. Inclui os trabalhadores que recebem benefícios
porque sofreram acidentes de
trabalho. Eles são pagos com recursos exclusivos, fornecidos pelos empregadores. Inclui também
os benefícios pagos aos anistiados e aos ex-combatentes. Pelos
números do próprio INSS, os 17
milhões são, na verdade, 8,7 milhões de aposentados, ganhando
em média R$ 200, contra os R$
1.600 que são pagos aos servidores públicos. Querem dar a entender que o povo está quebrando a
Previdência, quando na verdade
os privilegiados querem tirar o
acesso desse mesmo povo à aposentadoria.
De um jeito ou de outro, a Previdência está quebrada.
Está quebrada porque o trabalhador foi obrigado a sustentar
privilégios alheios. E vai continuar sustentando. Está quebrada
também porque é mais fácil cortar a aposentadoria do trabalhador do que cobrar dos sonegadores da Previdência. Finalmente,
está quebrada, porque o governo
drena o dinheiro do INSS. Um
exemplo: de quem a Jorgina roubou US$ 10 milhões? Do INSS.
Agora, que uma parte desse dinheiro foi recuperada, para onde
foi? Para o Tesouro. Quando será
devolvido? Ninguém sabe. O
INSS foi lesado duas vezes. A Previdência está quebrada porque o
governo propaga dados viciados
e negativos a respeito da Previdência. Enquanto isso, esconde
os números verdadeiros, porém
amargos, dos bancos. Quando a
crise estoura, ele faz o Proer para
os bancos e mutila a aposentadoria dos trabalhadores.
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