São Paulo, domingo, 22 de março de 1998

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ELIO GASPARI
Revolução na Light: corta-se a luz e cobra-se pela treva

Eliane Alcântara de Oliveira tem 32 anos, veste modelo 40, vive em Caxias, no Estado do Rio, e sua vida contém duas histórias, uma de sucesso e outra de desgraça. Elas parecem diferentes, mas talvez sejam uma só. Aos 19 anos, Eliane empregou-se no Bamerindus e trabalhou vários anos como secretária. Como não tinha hora para sair, trocou de seção e arrumou tempo para se formar em letras. Em 1992, aos 26 anos, ficou desempregada. Recebeu uma indenização equivalente a R$ 10 mil.
Eliane foi à luta. Tornou-se um caso exemplar daquela tenacidade que o tucanato apresenta como o triunfo da audácia empreendedora dos cidadãos diante da reestruturação da economia nacional. Comprou quatro máquinas e começou a costurar camisas nos fundos de sua casa. Começou produzindo 200 peças por mês. Enchia a mala do carro e saía vendendo aos amigos e ex-colegas de trabalho. Passou um ano sem conseguir tirar dinheiro da operação. Fez clientela com uma loja, arrumou freguesia, comprou mais máquinas, contratou costureiras e em 1995 estava produzindo 2.000 camisas por mês. No ano seguinte, alugou um galpão de 300 m2, à beira da rodovia Washington Luís, com mato na frente e uma igreja ao lado.
Na primeira semana de dezembro passado, a secretária que virou empresária abastecia uma rede de seis lojas e mantinha sete núcleos de costureiras trabalhando em suas casas. Eram 36 pessoas, mais 63 sacoleiras vendendo as mercadorias. Nessa escala, uma confecção pode faturar uma média de R$ 100 mil por mês, lucrando entre 20% e 40% (dependendo dos calotes que leva). Fazia um curso de estilismo na Faculdade Cândido Mendes e explorava uma linha de couro, jeans e malhas. Sua casa tinha dois carros, comprou um pequeno apartamento em Cabo Frio e conservava perto de R$ 40 mil de capital de giro. Estava no pique da produção de fim de ano, cortando as peças do chamado "branco do verão".
Às 14h30 do dia 8 de dezembro chegou ao seu galpão um carro da Light. Queriam examinar o relógio. Veio acompanhado por policiais do 61º DP. (Dois dias antes, a Light, numa espetaculosa operação, informara que a mansão dos Peixoto de Castro, cujo sobrenome identificou uma das maiores fortunas do Brasil, bebia energia elétrica furtada à empresa por meio de um dos famosos "gatos".)
O funcionário da Light abriu a caixa da confecção e, a seu juízo, registrou duas irregularidades: um fio desligado e o selo de chumbo do equipamento, viciado. O gerente passou oito horas na delegacia. No dia seguinte, às 8h30, um perito do Instituto Carlos Éboli abriu o lacre que havia sido posto na caixa de energia e examinou o relógio. Seu laudo demoraria algum tempo. A mãe de Eliane soube, pelo rádio, que a filha era acusada de furto de luz. No dia 12 de dezembro, a Light cortou a energia da confecção. Isso significou a paralisação do processo de corte dos panos e interrompeu o fornecimento de serviço à rede externa de costureiras.
Dias depois, um sócio de Eliane foi à Light e soube que a energia só seria religada se pagasse R$ 14 mil, correspondentes ao valor da energia furtada, multa e juros. (Não há papel que comprove a cobrança desse valor.) Um documento interno da Light sustenta que a confecção furtava energia havia pelo menos 16 meses, pois seu consumo real estava 33% abaixo do previsto. Em dinheiro, era coisa de R$ 120 por mês.
Sustentando que nunca roubou nada de ninguém, assim como jamais tomou dinheiro emprestado em banco nem teve dívida atrasada, a secretária que virou empresária resolveu brigar. Nem ela aceitava pagar, pois isso significaria reconhecer-se culpada, nem a Light admitia religar a luz. Assim, no inicio de fevereiro, Eliane foi à Justiça.
A essa altura já se consumara sua desgraça. A confecção perdeu todo o faturamento de fim de ano. Demitiu 11 funcionários, deu aviso prévio a outros 14 e ganhou uma ameaça de morte. Perdeu o capital de giro, foi ao Banco do Brasil para conseguir um financiamento e ouviu que seu negócio era de alto risco. Nem com garantias imobiliárias haveriam de lhe emprestar dinheiro. (Alô, alô, ministro Paulo Paiva, aquela reunião no Palácio do Planalto para tomar medidas de emergência contra o desemprego era pastiche. Crédito no Banco do Brasil do doutor Paulo César Ximenes quem tem é o deputado Sérgio Naya).
No dia 5 de fevereiro, Eliane bateu à porta da 2ª Vara Cível de Duque de Caxias. (Para quem gosta de falar mal de juiz, um aviso: em Caxias, a Justiça foi rápida.) Dois dias depois a Light foi citada pela juíza Natacha Fontes Machado. Tinha cinco dias para responder, mas levou dez para fazê-lo. Perder um prazo desses não é coisa que faça justiça ao Departamento Jurídico da Light, em cujo plantel colecionam-se tantos sobrenomes ilustres que caminhar por suas petições parece ser um passeio pelas ruas com nome de gente famosa: Prudente de Moraes, Souza Aguiar, Fonseca Costa, Sette Câmara ou Bandeira de Mello. Em sua defesa, a Light informou que o relógio do galpão fora examinado pela primeira vez em outubro, e as irregularidades foram mostradas a uma funcionária da confecção, "a qual apôs o seu ciente, conforme cópia em anexo". Impreciso, porque a rubrica da funcionária está datada de 8 de dezembro. Outro documento da Light informa: "Data de constatação da irregularidade: 8/12/97".
A Light informou que "houve, de forma irrefutável, a prática de fraude" e pediu à juíza que, de acordo com a "prova dos autos", negasse a medida cautelar. Informava também que fora lesada em R$ 3.512.
Os doutores da Light talvez não gostem de ir a Caxias. Se tivessem ido à delegacia que mobilizaram para acompanhar sua visita espetacular à confecção de Eliane, teriam encontrado, no meio do inquérito policial, o laudo do perito do Carlos Éboli. Se tivessem ido no dia 26 de fevereiro, quando a juíza leu a sentença, poderiam ter visto o laudo nos autos do processo. Ele informava o seguinte:
- Os peritos constataram, como única irregularidade no sistema, o fato de uma das fases ter o terminal frouxo (fio cor-de-rosa). Concluíam que o medidor de energia da confecção "não apresentava irregularidade que pudesse caracterizar haver ali um furto de energia elétrica, pois o fio de cor rosa frouxo não interrompia a marcação dos medidores".
Diante disso, a juíza fez o que os doutores da Light sugeriam. No dia 26 de fevereiro, de acordo "com a prova dos autos", ordenou-lhe que religasse a energia da confecção de Eliane. Mais: estranhou que a empresa, tendo desligado a luz em dezembro, continuasse cobrando pelo fornecimento de energia. Isso mesmo. Ela está cobrando R$ 355,12 pelo consumo de janeiro. A Light começou a quebrar a secretária que virou empresária no dia 12 de dezembro, quando lhe cortou a luz. A 26 de fevereiro era público que estava desmentida e preliminarmente derrotada em juízo. Bastaria que trabalhasse direito e exercitasse o sentimento da misericórdia para religar a luz, tão logo quanto lhe fosse possível. Nada disso. A energia só foi religada no dia 5 de março, quando o inquérito policial já fora arquivado, porque, segundo o delegado que o abriu: "Faleceu a prova técnica para ratificar o delito". (O processo continua, para alegria da galera.)
Até agora, o episódio produziu uma só prova de má conduta, documentada, cabal e irretocável. Ela está com a Light, que cobrou a Eliane algo como R$ 700 por dois meses de energia que nunca entregou. Sua nota fiscal informa que a leitura do relógio apontou um consumo de 2.080 quilowatts em janeiro. O dia em que o funcionário da Light que lê relógio parado for depor em juízo será um marco na história da indústria de fornecimento de energia. Se algum restaurante mandar ao doutor Michel Gaillard, presidente da empresa, duas contas de jantares que não comeu, ele haverá de entender o que vem fazendo em Caxias. A prepotência da Light para morder os outros e a sua preguiça para justificar-se em juízo transformaram o caso numa aula de economia política.
A Light impôs a uma empresária uma penalidade que sabidamente haveria de levá-la à garra. Para ir buscar R$ 3.512 a que julga ter direito, desempregou 11 pessoas, transtornou a vida de 63 sacoleiras e vai desempregar outras 14. Tudo bem, pois a Light não está aí para fazer justiça social. Seu negócio é vender energia, ganhar dinheiro e dividir o seu lucro entre os acionistas. Nessa hora, algum santo zangado resolveu pregar uma peça ao andar de cima.
Sem faturamento, Eliane está suspendendo os pagamentos aos fornecedores. Nesta terça-feira vence um pré-datado de R$ 7.980 que entregou à tecelagem Vicunha. E de quem é a Vicunha? Do empresário Benjamin Steinbruch. Steinbruch é o presidente do Conselho de Administração da Light e um de seus maiores acionistas. Defende a colocação de um brasileiro (ou um javanês que conheça as características da sociedade brasileira) na presidência da Light.
Steinbruch foi a única pessoa do circuito que se interessou pelo caso da pequena confecção de Caxias. Como Eliane organizou dois dossiês narrando sua desdita e lhe enviou um, ele telefonou-lhe no fim da tarde de quinta-feira, informando-a de que verificaria o que aconteceu e remediaria o que fosse possível. (Alô alô, doutor Bejamin, o pessoal da Vicunha não quer segurar o cheque da Eliane. Vê se descasca essa.)
Por que a história do sucesso e a história da desgraça de Eliane podem ser uma só? Porque elas mostram que é possível que uma secretária desempregada, com 26 anos de vida e uma indenização no bolso, venha a se transformar numa pequena e bem-sucedida empresária do andar de baixo. Mas ensina também que, nesse pedaço do Brasil, ninguém está livre da capacidade esmagadora do andar de cima de fazer o que bem entende. No andar errado, as coisas tendem a acabar dando errado. A Light quer mostrar que tem força para destruir os negócios e/ou a reputação de quem lhe furta energia. É bom que o faça. Com Eliane ela quis conseguir mais. Mostrou que pode quebrar as pernas de uma ex-secretária que, segundo o laudo dos peritos (depositários exclusivos de fé pública para dizer se há ou não furto de energia) não estava furtando coisa alguma. Grande vitória, doutor Gaillard.


ENTREVISTA
Raul Portanova (62 anos, com 41 de militância no direito previdenciário, em Porto Alegre)

O senhor vem dizendo que a reforma da Previdência está sendo discutida com números falsos, destinados a enganar os parlamentares e iludir a opinião pública. Pode provar isso?
A maior falácia está na manipulação da expectativa de vida do brasileiro, que é de 68 anos, com a idade com que morrem os contribuintes do INSS. Eu desafio o ministro Reinhold Stephanes a informar, com os números dos computadores da Dataprev, a idade média da morte dos seus contribuintes. Em 1962, o instituto de previdência dos industriários fez um cálculo nacional. Seus segurados morriam, na média, com 52 anos. Eu procurei refazer esse cálculo com os números do INSS de Porto Alegre, uma das cidades com melhor qualidade de vida do Brasil. Em agosto de 1990, os segurados morriam, em média, aos 56 anos. Em janeiro de 1991, aos 57. Esta é mais ou menos a média da morte do contribuinte do INSS, que não é funcionário público, deputado, senador ou professor aposentado da Universidade de São Paulo. Com a reforma, ele não consegue se aposentar antes de completar 60 anos.
Há outra?
A segunda falácia, bem mais repetida, é a confusão deliberada entre benefícios e aposentadorias. O ministro Stephanes diz que o INSS arrecada de 34 milhões de trabalhadores e paga a 17 milhões de beneficiários. Este número está desonestamente inchado. Ele embute contas que nada têm a ver com as aposentadorias e pensões do INSS. Inclui os trabalhadores que recebem benefícios porque sofreram acidentes de trabalho. Eles são pagos com recursos exclusivos, fornecidos pelos empregadores. Inclui também os benefícios pagos aos anistiados e aos ex-combatentes. Pelos números do próprio INSS, os 17 milhões são, na verdade, 8,7 milhões de aposentados, ganhando em média R$ 200, contra os R$ 1.600 que são pagos aos servidores públicos. Querem dar a entender que o povo está quebrando a Previdência, quando na verdade os privilegiados querem tirar o acesso desse mesmo povo à aposentadoria.
De um jeito ou de outro, a Previdência está quebrada.
Está quebrada porque o trabalhador foi obrigado a sustentar privilégios alheios. E vai continuar sustentando. Está quebrada também porque é mais fácil cortar a aposentadoria do trabalhador do que cobrar dos sonegadores da Previdência. Finalmente, está quebrada, porque o governo drena o dinheiro do INSS. Um exemplo: de quem a Jorgina roubou US$ 10 milhões? Do INSS. Agora, que uma parte desse dinheiro foi recuperada, para onde foi? Para o Tesouro. Quando será devolvido? Ninguém sabe. O INSS foi lesado duas vezes. A Previdência está quebrada porque o governo propaga dados viciados e negativos a respeito da Previdência. Enquanto isso, esconde os números verdadeiros, porém amargos, dos bancos. Quando a crise estoura, ele faz o Proer para os bancos e mutila a aposentadoria dos trabalhadores.



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