São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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Gabeira revê 79 e ataca "sonho burguês" do PT

Ex-guerrilheiro e precursor da "política do corpo" , deputado diz que narcisismo já teve papel progressista e sustenta que Lula e o PT agem como "emergentes" do poder

PLÍNIO FRAGA
DA SUCURSAL DO RIO

No verão de 1979, Fernando Paulo Nagle Gabeira -terrorista para o regime militar que o exilou por nove anos- chegou às areias de Ipanema com idéias escaldantes e uma tanga mínima. Havia desistido de incursões revolucionárias como o seqüestro do embaixador americano dez anos antes -que o levou à cadeia e depois ao exílio- para defender uma tal "política do corpo", que pressuponha do defensor "o desemperrar da cintura de macho latino", como se dizia à época.
Naquele mesmo ano, lançou "O que É Isso, Companheiro", livro em que descrevia a perplexidade da esquerda ortodoxa com comportamentos heterodoxos para aqueles tempos. Em 1980, anunciou o "crepúsculo do macho", engajou-se na defesa dos direitos de minorias e estimulou a renovação da agenda política nacional.
Vinte e cinco anos depois, o deputado federal Fernando Gabeira, 63, diz que o exílio o enriqueceu filosoficamente. "Jamais vou pedir um tostão à ditadura militar, mas também não dou para eles um tostão. Estamos quites."
Vive hoje a "angústia do tempo futuro". Está sem partido. Saiu do PT por discordar dos rumos do governo Lula e amadurece a idéia de deixar a política ao final de seu mandato, em 2006.
Chama os petistas de "deslumbrados, emergentes, aburguesados, impostores históricos".
Na eleição deste ano, Gabeira apóia César Maia (PFL) à reeleição à Prefeitura do Rio.
 
Descobriram, deslumbrados, que o mais importante é ficar no governo e secundário o que será do país. A presidência para Lula é uma ascensão material

Folha - A Anistia faz 25 anos, ao lado do início do que se batizou de "política do corpo". Como vê hoje uma e outra?
Fernando Gabeira -
No momento da Anistia, conjuntamente com a ruína das religiões, havia o debacle das grandes explicações políticas do mundo, sobretudo da grande religião laica que era o marxismo. E surgiam reivindicações e lutas que o marxismo, por suas características, não podia dar conta delas: liberdade do corpo, a questão das mulheres, do sexo, do racismo. Tudo isso ganhava força em razão de duas componentes novas: o indivíduo e o presente, o aqui-e-agora. Não havia mais o futuro que a religião dava -o reino dos céus. E muito menos o fim da exploração do homem pelo homem -o paraíso socialista.
Vinte e cinco anos depois, percebeu-se que a própria idéia do desenvolvimento do corpo, de todas as aspirações individuais, passou a ser também um mito.

Folha - O sr. vê acúmulo de frustração no campo político?
Gabeira -
Lutamos para a ascensão de um governo de esquerda, sem perceber que o instrumento de mudança que era o Estado estava cada vez menos importante. É estreita a margem de manobra no mundo globalizado.

Folha - Lula e o PT decepcionam?
Gabeira -
Existe hoje a absolutização do desenvolvimento econômico e o fetiche matemático. Estamos crescendo 4%! Não se pode em razão do crescimento de 4% deixar de problematizá-lo. O que estamos vendo é a utilização disso como fetiche para evitar outros temas. Blindam o Henrique Meirelles, porque não podemos reter o crescimento econômico. O Delúbio Soares, ao sair do Palácio do Planalto, foi questionado porque havia ido até lá depois de tanta agitação na imprensa a respeito da imagem dele. E ele respondeu que o importante era o crescimento econômico. Qualquer questionamento ético é contra o crescimento econômico.

Folha - O que é o projeto petista?
Gabeira -
Existe uma vontade deles de se perpetuar no poder. Ficou muito claro que, ao chegarem ao governo, eles descobriram, deslumbrados, que o mais importante é ficar no governo e secundário o que será feito com o país. A sucessão de frases como as do José Dirceu - "a principal tarefa é a reeleição de Lula"- ou do próprio Lula -de querer saber como ficar 37 anos no governo- mostra isso. Eram pessoas que viviam como uma certa dificuldade e de repente encontram esse universo de ascensão material. A presidência para o Lula é uma ascensão material. Ele desfruta de recursos e possibilidades materiais muito maiores do que quando estava na oposição.
Em primeiro lugar, eles vão tentar canalizar o que puderem de excedente para um trabalho social que mantenha as populações mais pobres na condição de clientes. Em segundo lugar, vão utilizar toda a força que têm -a sedução ou a ameaça- para garantir que a mídia os consagre. Na mídia, eles não dão tanta importância aos jornais. Dão à TV. Vão tentar essa manobra do pão e circo. Até que ponto vai dar certo, vai depender da capacidade deles.

Folha - O sr. viveu nove anos no exílio e nunca pleiteou indenização, como faculta a lei. Por quê?
Gabeira -
Considero que algumas pessoas, que foram injustiçadas, perseguidas, de fato mereciam aposentadoria especial e indenização. No meu caso, não perdi nada com esse processo. Fui para o exílio e voltei enriquecido. Jamais vou pedir um tostão à ditadura militar, mas também não dou para eles um tostão. Estamos quites. Há pessoas que efetivamente foram esmagadas que precisam dessa reparação. Mas ela deveria seguir critérios para não ser politicamente desvairada. Se você lutou por uma sociedade com menos diferenças é contraditório receber uma indenização de R$ 20 mil por mês como alguns tiveram. Indenização essa por ter lutado por uma sociedade de iguais!
Choca-me o fato de o PT ter passado na frente sindicalistas que aguardavam indenização. Pessoas bem colocadas, que não tiveram um confronto tão grande com a ditadura. Deveriam estabelecer critérios mais rígidos. Os petistas do governo mostraram que eram apenas emergentes, que estavam apenas querendo chegar à burguesia. O sonho deles era esse.

Folha - Seu rompimento com o PT parece definitivo.
Gabeira -
Tenho a impressão de que não votarei nunca mais no PT. Não gosto de impostores.

Folha - Como se dizia nos anos 70, eles venceram?
Gabeira -
Não diria que eles venceram. Já não sei mais quem são eles e quem somos nós. Não tenho essa visão de que estamos em decadência, cada vez piores. Tenho a visão de que é preciso avançar. Não há mais no horizonte nenhuma transformação radical. O que há é a administração do real e um avanço estratégico da democracia. Eu, surpreendentemente, sempre me vejo na oposição.

Folha - "O Que É Isso, Companheiro" completa 25 anos também. Imaginava o bordão tão atual?
Gabeira -
"O que é isso, companheiro" expressa uma perplexidade com atitudes que você toma e que dificilmente são encaixadas no quadro de esquerda. No caso atual, "o que é isso, companheiro" vale porque não compreendemos se estamos dando um passo adiante. Não sinto que o Brasil tenha dado um passo adiante com a vitória de Lula. Em muitos campos, sinto até um retrocesso.


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