São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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POLÍTICA E DESBUNDE

Abertura inflamou debate sobre arte engajada e pôs a expressão "patrulha ideológica" em circuito

Cultura da época destampou panela de pressão

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

A anistia foi conquistada ao som de "O Bêbado e a Equilibrista" (João Bosco/Aldir Blanc), embalada por "Não Chore Mais" (versão de Gilberto Gil para o sucesso de Bob Marley) e festejada com "Tô Voltando" (Maurício Tapajós/Paulo César Pinheiro). A trilha sonora marcou o momento que a ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda define como "parênteses comemorativo" na cultura brasileira.
"Houve uma onda gigante de euforia. Tudo era muito celebrado, ritualizado. Era apaixonante falar de coisas que tinham ficado dentro de uma panela de pressão", diz. Organizadora da coletânea "26 Poetas Hoje", súmula lançada em 1976 da poesia marginal, e biógrafa do Asdrúbal Trouxe o Trombone, grupo de teatro dos anos 70, Heloísa diz que o estouro da panela de pressão tirou, temporariamente, o foco dos movimentos, alternativos à esquerda tradicional.
O grande sucesso teatral de 79 foi "Rasga Coração", de Oduvaldo Vianna Filho (1936-74), o Vianinha, ex-Partidão, censurada por cinco anos. "Foi um grito de liberdade, renascimento da esperança. A partir daí, imaginamos que as gavetas dos autores se abririam cheias. Mas não se abriu nada, e a dramaturgia brasileira não se fortaleceu", lamenta José Renato, diretor da peça.
As discussões em torno da necessidade de a arte ter ou não compromissos políticos reacenderia após a celebração da Anistia. Em 78, ela já aparecera com a criação, por Cacá Diegues, da expressão "patrulha ideológica". O cineasta condenava os que defendiam uma cultura obrigatoriamente engajada.
Tinha como aliado o poeta Ferreira Gullar, que voltara ao Brasil em 77, antes da anistia, por não suportar mais o exílio na Argentina. "Depois da abertura, quem passou anos e anos fazendo arte política sentiu necessidade de expressar outras coisas, dar amplitude maior para suas temáticas", diz Gullar. "E houve reação de alguns sectários, os mesmos caras que eram a favor da luta armada, de tocar fogo em teatros. O pessoal do "quem sabe faz a hora", que é uma grande besteira. Se fosse só por vontade, o mundo já estava mudado."
Abordando num artigo de 82 os primeiros anos pós-anistia, Heloísa destacava dois grupos: os "retornados" e os "sufocados". O primeiro, com Fernando Gabeira e outros, trazia novidades comportamentais, discussões ecológicas etc. Já o segundo, formado em especial por ex-presos políticos, queria retomar os temas cortados pela ditadura.
O diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa foi um "retornado" que se sentiu "sufocado". Estava "entusiasmadérrimo" com o que tinha vivido em Portugal e em Moçambique e diz ter visto aqui uma "cultura linha [Luís Carlos] Prestes importada do realismo socialista".
"Não me conformei com aquele palco italiano, o palquinho de colégio de freira, do palanque, do púlpito. Tomei o partido de um teatro popular, com nordestinos, negros, jovens malucos. A classe média fugiu apavorada, é claro. Fui trabalhar nos subterrâneos e lutei 13 anos para reabrir o Oficina, para provar que o teatro tem poder. Não me arrependo de nada", diz.


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