São Paulo, segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

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DIPLOMACIA

Chanceler afirma que veto americano à venda de aviões da Embraer para a Venezuela foi absurdo e injustificável

Amorim diz que EUA "pisaram no nosso calo"

ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA

O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, criticou duramente o veto dos EUA à venda de aviões da Embraer à Venezuela, disse que aguarda novo posicionamento do governo americano e não descartou recorrer a fóruns internacionais, como a OMC (Organização Mundial do Comércio), contra a decisão.
"Pisaram no nosso calo", disse Amorim, 63, classificando a decisão americana de "um absurdo, sem justificativa aceitável e sem previsão em normas internacionais". No último dia 10, o presidente Hugo Chávez acusou os Estados Unidos de impedir a Embraer de vender à Venezuela 36 aviões de treinamento militar que usam tecnologia americana.
Apesar de o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia, ter dito que o governo brasileiro não iria lutar, por ser uma questão comercial, Amorim está lutando, e muito. Falou duas vezes com a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, e também com o secretário de Comércio, Robert Portman.
Depois, enviou correspondência para Condoleezza, considerou a resposta "insatisfatória", voltou à carga e aguarda agora um "reexame da questão". Amorim deu a entrevista à Folha no sábado, em seu gabinete, usando um boné da Minustah, a força de paz no Haiti.
 

Folha - O que o Brasil está fazendo em relação ao veto americano ao negócio da Embraer?
Celso Amorim -
Primeiro, estamos usando os canais diplomáticos no mais alto nível. Conversei com o Bob Portman [secretário de Comércio] e duas vezes com a Condoleezza [Rice, secretária de Estado]. Também escrevi para a Condoleezza e tive uma resposta que não me satisfez plenamente.

Folha - O que ela respondeu?
Amorim -
Ela não me deu a garantia, a segurança de que haverá um tratamento adequado à questão. Qual a política dos EUA para a Venezuela é um problema em que, eventualmente, até poderemos ajudar, mas é um problema entre os dois. Ocorre que aí pisaram no nosso calo. Eu não encontro justificativas para o veto. Primeiro que o Brasil não favorece em geral esse tipo de medida, de veto. Segundo, os aviões nem são de uso militar ofensivo. Terceiro, a Venezuela não é ameaça militar a ninguém, não está sob sanções militares ou econômicas aprovadas por nenhum órgão internacional e nem mesmo pelo Congresso dos EUA. Não que isso mudasse alguma coisa, mas nem sequer isso. Além do que, se há uma política, não era do conhecimento da Embraer quando o negócio foi feito. Então, há uma série de fatores que nos dizem que o veto é um absurdo. Pelo papel que o Brasil tem tido, inclusive com reconhecimento dos próprios EUA, isso definitivamente não foi nem é uma boa coisa.

Folha - O Brasil recorrerá a algum fórum internacional, como a OMC?
Amorim -
Não deixaremos de estudar todas as alternativas do ponto de vista diplomático em defesa dos nossos direitos.

Folha - Isso é um "sim'?
Amorim -
Se isso for necessário. Esperamos que não seja.

Folha - O sr. acha que é uma questão política entre os EUA e a Venezuela que está interferindo em interesses brasileiros?
Amorim -
Exatamente. Achamos que não vale a pena e que isso não é uma política positiva para o bom diálogo que nós queremos e desejamos entre os EUA e a Venezuela, mas isso é um problema deles. O que nos interessa é que pisaram no nosso calo.

Folha - Os americanos queriam penalizar a Venezuela...
Amorim -
E estão penalizando o Brasil.

Folha - O assessor da Presidência Marco Aurélio Garcia disse que não cabe ao governo se meter porque é uma questão comercial da Embraer. Cabe ou não cabe?
Amorim -
Eu já disse o que fiz, não fui desautorizado e continuo a fazer. Não gosto de comentar declarações de outras pessoas pela imprensa, porque não sei em que contexto foram ditas.

Folha - O que a Condoleezza argumentou na carta?
Amorim -
Ela comentou uma política que vem sendo seguida e não foi convincente. Por isso voltei a insistir ao telefone para que o assunto fosse reexaminado, e ela me pareceu disposta a fazê-lo. Se o reexame vai resultar em algo positivo, não sei. Só sei que ela vai analisar novamente o assunto.

Folha - Existe um processo de "esquerdização" na América Latina?
Amorim -
O que há, sem dúvida nenhuma, é uma tendência de governos mais comprometidos com reformas sociais, com maior autonomia em relação às grandes potências do mundo e maior vontade de integração regional. Se você identificar esquerda com a visão de progresso, reforma social, democracia e com forte defesa dos interesses nacionais, a resposta à sua pergunta é sim.

Folha - Quando o sr. fala em maior autonomia em relação às grandes potências, lê-se virar as costas aos EUA.
Amorim -
Os EUA são uma potência, um grande mercado, e ninguém está voltando as costas, nem a China. Agora, defendo, sim, voltarmos também uns para os outros aqui dentro do continente. Não há uma dicotomia. Nossas exportações para os EUA estão batendo recordes, mas, em termos relativos, para outros lugares cresceram mais. Isso é bom, estamos diversificando. O que é o maior sinônimo de independência hoje? É a diversificação.

Folha - A retórica do Chávez é muito diferente disso.
Amorim -
Bem, cada país e cada líder terão a retórica que corresponda à sua realidade, aos fatos que vivenciaram. Não podemos nos esquecer disso, não são fatos imaginários. Que Chávez foi perseguido, foi, não há dúvida. Que houve tentativa de golpe, houve. E que, no mínimo dos mínimos, houve tolerância com essa tentativa de golpe, houve. Cada um que julgue, e a história dirá.

Folha - O que significa Evo Morales e que tipo de alianças fará?
Amorim -
Evo Morales é um líder camponês, que vem das bases, é o que representa de forma mais profunda o que há de raízes sociais do povo boliviano. Representa a emergência de setores populares que sempre foram marginalizados de qualquer bem-estar e qualquer progresso que tenha havido na Bolívia. Já não foi muito, e para eles foi menos ainda.

Folha - Pelo discurso de campanha, nacionalista e estatizante, e pelos primeiros movimentos já eleito, visitando Cuba, Venezuela e China, está evidente que ele vai engrossar esse "eixo esquerdizante". O Brasil vai ser a babá?
Amorim -
O Brasil não é babá de ninguém. Tem sua própria realidade, tem um governo comprometido com as reformas sociais, mas dentro de sua própria complexidade e sem rejeitar os preceitos do capitalismo. Temos, também, de contribuir para que os processos nos outros países se dêem também de maneira reformadora e democrática, mas sem ser babá. Até porque, se há uma situação explosiva num país, ele acaba explodindo mesmo.

Folha - Como agir quando Evo Morales fala em nacionalizar a área de petróleo, o que pode ser muito prejudicial à Petrobras?
Amorim -
Nós não acreditamos em relação de dominação nem de imposição: as relações têm de ser mutuamente benéficas. Temos certeza de que é perfeitamente possível chegar a uma equação em que se atendam algumas reivindicações históricas do povo boliviano e manter a viabilidade econômica do empreendimento.

Folha - No mundo globalizado, a relação de Brasil, Venezuela e outros países do continente com os EUA não está chegando a uma adaptação do velho ditado: "Inimigos, inimigos, negócios à parte"?
Amorim-
O mundo globalizado é em torno de negócios, sim, mas também é em torno de princípios, princípios que não podem ser reduzidos a questões doutrinárias e fundamentalistas, mas de independência, bem-estar social e não interferência. Só nesta semana [semana passada] nós recebemos em Brasília dois presidentes, o Chávez, o Néstor Kirchner e três chanceleres do mundo islâmico, um turco, um marroquino e um tunisiano. Isso nunca aconteceu no Brasil, ao que eu saiba.

Folha - Por que Kirchner, antes arredio com o Brasil, está tão amigo? Foi o apoio do Brasil à Cláusula de Adaptação Competitiva?
Amorim-
Se houve mal-entendidos no passado, eles estão totalmente esclarecidos e superados, e o próprio Kirchner está mais consolidado na Argentina. Nem foi batido o martelo na CAC, ainda está sendo discutido.


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