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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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PROGRAMA EM XEQUE

Cartão-Alimentação do PT não exige contrapartidas, como frequência à escola, para recebimento do benefício

Lula estuda submeter toda política social ao modelo do Fome Zero

MARTA SALOMON
LUCIANA CONSTANTINO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Criticado pelo tom assistencialista de seus primeiros passos, o Fome Zero caminha para ser o "guarda-chuva" da área social do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Os programas de transferência de renda herdados do governo Fernando Henrique Cardoso, se sobreviverem, terão o status de apêndice. Prevaleceriam os benefícios vinculados à compra de alimentos. Até 2006, o Fome Zero deverá atingir 9,5 milhões de famílias pobres no país.
A meta acima consta de documento preparado para debate na reunião extraordinária do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), na próxima terça-feira. Dá uma indicação do futuro da política social de Lula -um assunto sobre o qual os ministros da área se sentem pouco à vontade para falar. Trata-se de um modelo ainda em construção, cuja montagem envolve uma velada disputa de poder.
A meta mencionada no documento se refere a pessoas em situação de "insegurança alimentar", o mais novo sinônimo de fome. Atualmente, ninguém sabe quantos são exatamente os beneficiários de programas sociais porque alguns se sobrepõem.
O valor do benefício indicado no documento, de R$ 50, é o mesmo pago atualmente pelo Cartão-Alimentação a mil famílias do projeto-piloto do Fome Zero nos municípios de Guaribas e Acauã (PI). A partir de maio, mais 179 municípios deverão entrar no programa. Por ora, a meta oficial é atingir mil municípios do semi-árido até o fim do ano.
Parte desses municípios, cujos nomes não foram divulgados, coincidirá com aqueles atendidos até aqui pelo Bolsa-Renda, criado na gestão FHC e cujo pagamento será suspenso em abril diante de previsões de chuvas colhidas pelo governo federal.
O programa repassa R$ 30 por mês a famílias pobres em municípios declarados em situação de emergência por causa da seca. A mesma clientela deverá receber R$ 50 mensais, mas terá de esperar um tempo por isso.
O Bolsa-Renda não é o único programa social da era FHC que está na mira da equipe de Lula. A Câmara de Política Social avalia a conveniência de manter o pagamento do Vale-Gás, de R$ 15 por bimestre -o único benefício pago a uma parcela das famílias pobres do país.
O Ministério de Minas e Energia, que é o responsável pelo programa, resiste à extinção com o argumento de que o benefício substituiu o subsídio ao gás. Os candidatos mais firmes à sobrevivência são o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimentação.
Coube ao próprio ministro José Graziano (Segurança Alimentar e Combate à Fome) comandar as negociações para começar a integrar os programas sociais do governo, atualmente dispersos por seis ministérios. Sinal de que as pressões para demitir o formulador do Fome Zero não tiveram efeito com o chefe Lula.

Novo foco
A proposta de integração dos programas leva em conta que, no futuro, eles não deverão mais estar voltados para clientelas específicas, como crianças em idade escolar ou gestantes dos programas Bolsa-Escola e Bolsa Alimentação, respectivamente.
A intenção do governo é transferir o foco dos indivíduos para as famílias pobres e envolvê-las -não compulsoriamente- em programas paralelos de educação, saúde, formação profissional e prestação de serviços comunitários, a serem oferecidos mediante parcerias com a sociedade.
A equipe de Lula lamenta casos em que famílias com filhos em idade escolar recebem recursos da União e uma família vizinha -igualmente pobre, mas sem filho- não recebe, ainda que todas as famílias pobres cadastradas tenham direito ao Vale-Gás.
Com a transferência do foco dos programas para as famílias, serão revistas também as contrapartidas impostas hoje como forma de combater a exclusão social.
O Cartão-Alimentação criado pelo governo Lula não exige contrapartidas, como a comprovação de frequência às aulas no Bolsa-Escola para famílias que tenham crianças entre 6 e 15 anos. Os critérios para desligamento das famílias do Fome Zero dependem dos comitês locais.
A orientação do governo federal é que as famílias passem por uma avaliação a cada seis meses. O comitê decide então se o benefício deve ou não ser mantido. Em princípio, o pagamento dos R$ 50 mensais é feito por tempo indeterminado.
Em Guaribas e Acauã, cidades da experiência piloto do Fome Zero, por exemplo, estima-se que metade das famílias atendidas tenha jovens e adultos analfabetos. O comitê local estimula que eles frequentem cursos de alfabetização, mas não suspende o pagamento de quem não faz isso. "Não existe camisa-de-força", diz Rosângela Sousa, coordenadora do Fome Zero no Piauí.
No que até aqui se apresenta como a principal medida de combate à pobreza do Fome Zero, o ministro Cristovam Buarque (Educação) prepara um programa para alfabetizar 3 milhões de jovens e adultos até o fim do ano. A meta até o final do mandato de Lula é alfabetizar 20 milhões. Os já alfabetizados receberiam estímulos para continuar estudando.
A idéia de Buarque é conceder um benefício extra para professores e alunos envolvidos na Alfabetização Zero.

Fome versus pobreza
Hesitante entre o assistencialismo e o combate estrutural à pobreza, o governo optou claramente pelo primeiro caminho ao anunciar a distribuição de cestas básicas a sem-terra acampados. No final de 2000, o governo FHC decretou o fim das cestas básicas e, dali para a frente, optou por programas de transferência de renda às populações. Famílias acampadas acabaram excluídas; agora são alvo do Fome Zero com as velhas cestas.
Pressionado por invasões de terras e de prédios públicos promovidas por sem-terra, o governo alega que se trata de uma medida emergencial. Serão gastos entre R$ 6 milhões e R$ 7 milhões na compra de alimentos para mais de 60 mil famílias pelo período de três meses.
Mas o governo Lula insiste que o Fome Zero não é assistencialista. Entre as "políticas estruturais" de combate à fome e segurança alimentar, o site do programa menciona as seguintes: aumento do salário mínimo e do crédito para investimentos nas pequenas empresas, requalificação profissional para pessoas acima de 40 anos e até o combate à entrada de alimentos transgênicos no país -no mesmo momento em que o governo estuda a liberação da venda no mercado interno de soja geneticamente modificada, plantada principalmente no Estado do Rio Grande do Sul.


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