UOL

São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENSÃO NO CAMPO

Zander Navarro, da UFRGS, diz que MST irritará governo e que reforma agrária deixou de ser questão nacional

Revogar MP é "tiro no pé", diz especialista

EDUARDO SCOLESE
DA AGÊNCIA FOLHA

O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) é uma organização política que nada tem a ver com um movimento social, e o governo Luiz Inácio Lula da Silva dará um tiro no pé caso revogue a medida provisória que criminaliza as invasões de terra.
Essas são as avaliações do sociólogo Zander Navarro, professor do programa de pós-graduação em desenvolvimento rural da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Segundo Navarro, 51, o governo será "irritado profundamente" pelo MST nos próximos anos.
A pedido do sociólogo, a entrevista foi feita por e-mail e de forma gradativa -assim que recebia uma resposta, a reportagem enviava a pergunta seguinte. Leia trechos a seguir.
 

Agência Folha - Publicamente, as principais lideranças do MST cobram agilidade do governo e prometem tolerância zero ao latifúndio. Trata-se de um aviso de rompimento de seus laços históricos com os petistas ou é uma estratégia do movimento para ser visto como autônomo e independente?
Zander Navarro -
Infelizmente, há um disseminado desconhecimento sobre esta que é, de fato, uma organização política, que nada tem a ver com o que sociologicamente definiríamos como um "movimento social". Como tal, o MST estabeleceu, ao longo de sua existência, regras internas, inclusive punitivas, formas de recrutamento e departamentos.
Instituiu até mesmo carreiras, embora a palavra às vezes cause arrepios em setores da esquerda, os quais julgam que os sem-terra militantes, por serem pobres, necessariamente são virtuosos e sem ambições materiais.
Como uma organização política que é, não poderia deixar de atuar no jogo partidário. O MST é fundador do PT em diversos municípios, e centenas de seus militantes atuam no âmbito partidário.
Romper com o campo petista está fora de cogitações, inclusive porque o acesso aos fundos públicos é crucial para a existência da organização, cuja natureza hoje é quase paraestatal.

Agência Folha - O período pré-eleitoral foi marcado por poucas invasões. Hoje, porém, o MST diz que não tem como controlar os acampados que alegam passar fome. Como explicar essa suposta "falta de controle" atual?
Navarro -
Fazem parte do folclore as afirmações acerca da estrutura descentralizada do movimento ou sobre a existência de uma suposta soberania da base social sobre as decisões a serem implementadas, sugerindo um certo descontrole sobre as ações.
Se nada ocorreu antes das eleições, foi porque a direção nacional do MST julgou politicamente inoportuna qualquer ação e facilmente controlou suas bases.

Agência Folha - Então o sr. acha que, caso deseje, a coordenação nacional do MST tem condições de baixar um pacto de não-invasão?
Navarro -
Claro, sem nenhum problema. A pergunta, de fato, é outra: isso interessa aos dirigentes do movimento? O tema de fundo é o dilema principal da organização, especialmente a partir dos anos 90: manter-se sob estatuto semi-clandestino ou então buscar a institucionalização.

Agência Folha - Lula agiu corretamente ao promover uma distribuição política de cargos no Incra?
Navarro -
Creio que seria ingenuidade imaginar que o PT, no poder, agiria diferentemente dos outros partidos em relação aos cargos públicos. Mas causa tristeza e uma certa frustração perceber, à luz do discurso de defesa da ética que sempre caracterizou o partido, que o preenchimento de cargos seguisse quase exclusivamente a lógica de uma "ação entre amigos" ou o loteamento entre os grupos internos.
Ao dividir o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Incra entre subgrupos petistas, inclusive rivais, o governo está apenas procurando problemas para si próprio, que não deverão demorar a surgir, ou na forma de conflitos abertos, ou sob a ineficiência operacional. É um retrocesso.

Agência Folha - O sr. acredita que em um futuro próximo, com uma escalada das invasões, o presidente Lula será visto chamando integrantes do MST de "baderneiros"?
Navarro -
A organização irá irritar profundamente a administração federal nos anos vindouros, sem nenhuma dúvida. O MST perdeu a sua razão de ser, pois o tempo da reforma agrária passou e esta, de fato, há muito deixou de ser exigência histórica e nacional, sob qualquer ângulo. É por essa razão que seus dirigentes vêm tentando ampliar seu raio de ação, adicionando temas como transgênicos e Alca [Área de Livre Comércio das Américas]. Mas não acredito que Lula utilizará aqueles termos, pois seria um radical desmentido à sua extraordinária biografia.

Agência Folha - Politicamente, interessa ao MST ter todas as suas reivindicações atendidas?
Navarro -
Se isso ocorresse, a organização deixaria de ter qualquer significado e fecharia suas portas. Como ficariam, por exemplo, os seus funcionários-militantes? Atualmente podem chegar a mil os integrantes que dependem da vitalidade financeira do MST e suas organizações para se manter.
Não são mais sem-terra nem mesmo agricultores, embora possam ter uma parcela de terra em algum assentamento. São, de fato, profissionais da política.
O mais trágico, às vezes patético, é que há milhares de pessoas que acreditam piamente que seus militantes são politicamente imaculados e apenas lutam por uma real efetivação da reforma agrária no Brasil. Há o MST de seus dirigentes-militantes, o qual, por várias razões, representa atualmente um dos maiores equívocos políticos em nosso país e perdeu inteiramente seu norte estratégico.

Agência Folha - Se o PT revogar a medida provisória que impede a vistoria de áreas invadidas, será criticado pela direita e por parte da mídia. Se decidir mantê-la, terá dificuldades para assentar as cerca de 100 mil famílias acampadas pelo país. Qual a saída?
Navarro -
Revogar a MP será um verdadeiro tiro no pé e o governo se arrependerá rapidamente, se assim proceder. Além disso, não é realmente a MP que impede o assentamento dos acampados, pois o estoque de terras potencialmente utilizável para formar novos assentamentos é mais do que suficiente para a demanda existente.
O problema é a exigência de formar os novos assentamentos na própria região dos acampamentos, o que o MST impõe exatamente porque não quer perder sua presença nos Estados e o controle sobre os assentados.


Texto Anterior: Janio de Freitas: Inocentes e criminosos
Próximo Texto: Justiça: Juiz é alvo de investigação criminal do TRF
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.