São Paulo, terça-feira, 23 de julho de 2002

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LOBBY INTERNACIONAL

Governo dispensou licitação pública com o argumento de preservar segurança nacional e soberania

Militar ofereceu acesso total a informações

DE WASHINGTON

Embora o governo brasileiro tenha invocado o dever de preservar a segurança nacional e a soberania para dispensar uma licitação pública para o Sivam, o tenente-brigadeiro Marcos Antônio de Oliveira ofereceu aos EUA, em 94, acesso total aos dados produzidos pelo sistema quando ele estivesse em funcionamento.
Segundo um telegrama enviado pela embaixada dos EUA em Brasília ao Departamento de Estado, a oferta ocorreu em junho de 94, quando Oliveira coordenava o processo de seleção das empresas fornecedoras de equipamentos ao projeto. Faltava pouco mais de uma semana para a apresentação das propostas finais da Raytheon e da francesa Thomson-CSF.
O telegrama relata conversa entre o então embaixador norte-americano no Brasil, Melvin Levitsky, e Oliveira. Em algumas semanas seria anunciado o vencedor da disputa. "A vantagem principal para os objetivos e metas do esforço norte-americano antinarcóticos será a criação de um sistema de monitoramento numa região antes aberta à exploração por narcotraficantes", diz.
"Uma melhora significativa na cooperação hemisférica ocorrerá se a rede Sivam for integrada à Rede de Radares da Bacia Caribenha [CBRN". O brigadeiro Oliveira, gerente de programa do Sivam, fez uma oferta no sentido de tal integração durante o encontro que manteve com o embaixador em junho de 1994. Oliveira também afirmou claramente que as informações geradas pelo Sivam podem ser compartilhadas com o governo norte-americano."

Pressão
A reunião de Oliveira com Levitsky não foi a única dele com diplomatas americanos. Houve ao menos outros dois encontros com diplomatas dos EUA na reta final do processo de seleção do Sivam.
Os documentos obtidos pela Folha mostram que Oliveira era visto pela Casa Branca e pelo Departamento de Estado como alvo principal do lobby norte-americano para ganhar o projeto.
Em 24 de junho de 94, o embaixador enviou a Washington telegrama informando como estavam os esforços para convencer Oliveira a produzir uma carta ao Eximbank atestando o caráter antinarcóticos dos cinco aviões/radares que seriam comprados pelo governo brasileiro.
Oliveira era bombardeado com pedidos contundentes da embaixada dos EUA em Brasília e do consulado do país no Rio.
"A embaixada e o consulado estão tentando solicitar uma carta do governo brasileiro que poderia garantir o financiamento do Eximbank para os radares "militares" dentro do projeto Sivam. Pode ser difícil, dadas as inibições constitucionais e políticas brasileiras", diz o telegrama. "A embaixada vai retomar o assunto com Oliveira de maneira insistente para tentar extrair a carta."
Essa carta acabou sendo produzida pelo governo brasileiro e permitiu aos EUA melhorarem sua proposta financeira e garantirem o Sivam à Raytheon. Os EUA souberam que a proposta da Raytheon era pior que a da Thomson por meio de seus serviços de inteligência -eufemismo para espionagem.
O processo de seleção do Sivam conduzido pelo governo brasileiro não proibia expressamente encontros de Oliveira com diplomatas estrangeiros. No entanto, algumas das ações do militar descritas pelos norte-americanos contrariam claramente princípios de conduta básicos de um funcionário público e suas promessas, feitas ao Congresso, de respeitar o princípio da competitividade, os procedimentos transparentes e o devido processo legal.
Os telegramas obtidos pela Folha mostram que Oliveira entregou a uma diplomata norte-americana um memorando confidencial interno do governo brasileiro e recebeu dela um rascunho de um ofício que deveria ser assinado por ele próprio ou pelo ministro brasileiro de Assuntos Estratégicos. Não se sabe se Oliveira deu tratamento igual à concorrente francesa que disputou a licitação com a Raytheon. Procurada pela Folha na França e no Brasil, ela preferiu não se manifestar.

"Seguimos a lei"
Num depoimento em defesa do Sivam que deu ao Congresso em 96, Oliveira definiu da seguinte maneira o processo de licitação secreto que conduziu:
"Fala-se que não houve concorrência, mas ocorreu a maior concorrência pública já registrada na história do país. Ou seja, em termos de competitividade, nunca houve nesse país nenhuma concorrência com tantos participantes. Seguimos a lei 8.666. Seguimos a lei. Fomos dispensados, mas cumprimos absolutamente o decreto do presidente: a seleção dos melhores preços e das melhores técnicas. Então não existe nenhuma dúvida de que o conjunto apresentado pela Raytheon ou pelas empresas associadas à Raytheon foi o melhor".
A justificativa de Oliveira também conflita com a promessa que fez aos americanos de dividir com eles os dados do Sivam. Essa promessa também mostrou que, com relação à disponibilidade de dados do Sivam, Oliveira tratou os norte-americanos com uma generosidade não oferecida à sociedade brasileira.
Em depoimento ao Congresso em 96, o brigadeiro defendeu a dispensa de licitação e sugeriu que a publicidade dos dados produzidos pelo sistema seria extremamente limitada. "Uma pergunta que sempre nos fazem é sobre a questão da disponibilidade da informação. Diria que -não sei em que percentual- temos de abrir essas informações para toda a sociedade brasileira. Mas existem informações de valor estratégico de natureza econômica que não podem ser colocadas à disposição de todos."
Oliveira disse ainda que o objetivo do Sivam não era "só descobrir aquilo que os irmãos do Norte já conhecem há muitos anos". "É difícil entender, mas, às vezes, as pessoas que combatem o Sivam estão querendo negar aos brasileiros aquilo que outros já conhecem." (MARCIO AITH)


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