São Paulo, quinta-feira, 23 de agosto de 2001

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CELSO PINTO

Os limites do pacote argentino

O pacote argentino dá algum fôlego de curto prazo, acena com alguma ação na busca de solvência, mas não resolve as dúvidas, especialmente políticas, sobre como o país retomará a competividade. Sem ela, não há crescimento, nem solução a longo prazo.
A reestruturação da dívida externa entrou no pacote por insistência americana. O câmbio, contudo, ficou intocado. Os alemães, segundo fontes qualificadas da Argentina e de Washington, foram os que mais pressionaram por uma mudança no câmbio antes de qualquer ajuda, invocando o sucesso de Reino Unido, Itália e Espanha em sair da crise monetária de 92 via desalorização.
Espanha, França, Itália e Reino Unido, foram importantes nas pressões por uma ajuda à Argentina. A insistência latino-americana, especialmente de Brasil e Chile, também ajudou a colocar os Estados Unidos numa posição incômoda. Se nada fizessem poderiam ser acusados de serem responsáveis por uma crise que poderia se alastrar pelo continente.
O câmbio foi preservado, mas amarrou-se o pacote a uma reestruturação da dívida. Qual, não está claro. São US$ 3 bilhões (além de US$ 5 bilhões que seriam liberados em setembro) que estão condicionados à reestruturação. Uma especulação no mercado é que os US$ 3 bilhões seriam usados para comprar garantias para um novo título. Como a dívida é de US$ 128 bilhões, os US$ 3 bilhões não levam muito longe. Mas, se virarem um "zero coupom bond" do Tesouro americano, que só paga juros e principal no final, poderiam sustentar uma emissão de uns US$ 20 bilhões com 30 anos de prazo.
Até aí, seria uma reedição de fórmulas do Plano Brady. Em troca de aceitar menos juros, ou redução no principal, o investidor ganharia um papel com garantia. Especulava-se ontem, na Argentina, outra hipótese, mais inovadora.
Uma comissão de economistas do Congresso americano, entre eles Alan Meltzer e Charles Calomiris, sugeriu, em maio, um "default construtivo" como nova política para o FMI. Funcionaria assim: o FMI financiaria um fundo para a Argentina recomprar sua dívida com um desconto maior do que o existente no mercado. Por exemplo: ontem, o FRB, título da dívida argentina, estava negociado em torno de 75 centavos por dólar. Este fundo aceitaria recomprar a, digamos, 40 ou 50 centavos por dólar. Quem quisesse sair do risco argentina, teria que aceitar a perda.
Na época em que a proposta foi apresentada, perguntei ao presidente do Banco Central, Armínio Fraga, sua opinião. Ele achava que era um exercício puramente acadêmico, sem chances de virar política do FMI. A conferir.
Os argentinos têm boas razões para relutar em mexer no câmbio. O ex-ministro da Economia, Ricardo Lopez Murphy, que esteve no Brasil semana passada, lembrou duas. A primeira é que seria muito difícil se ter qualquer demanda pelo peso depois de uma desvalorização.
Hoje, 68% dos depósitos já são em dólares. Um dos temores dos bancos na Argentina, diz um banqueiro, é que, numa crise cambial, decida-se não honrar estes depósitos em dólares. Seria uma quebra de confiança grave no sistema bancário. A alternativa, seria honrar depósitos em dólares e desvalorizar o peso. Mas, além de problemas de equidade, seria preciso encontrar fórmulas para forçar a população a usar os pesos desvalorizados.
A outra razão é que não dá para desvalorizar sem moratória. O estoque da dívida pública equivale a 45,9% do PIB. Nos cálculos de João Carlos Scandiuzzi, do banco Pactual, uma desvalorização de 50%, como no Brasil, elevaria o estoque a 92,2% do PIB. Mesmo que a economia crescesse de 2% a 3% e houvesse superávit primário de 4% do PIB, seria necessária uma redução de 34% a 43% no valor da dívida apenas para evitar que o estoque continuasse a crescer.
A solução do regime de "currency board" para a competitividade é redução de preços e salários. Isso vem acontecendo no setor privado, segundo Murphy, mas não no setor público. Na verdade, a Argentina deixou de cumprir três requisitos básicos para operar num regime deste tipo: ter uma dívida mínima, equilíbrio fiscal e flexibilidade de salários.
Na visão ingênua de alguns economistas, uma das vantagens do regime de "currency board" seria exatamente tornar automática a obtenção destes requisitos. O governo perde a capacidade de emitir (só pode fazê-lo quando aumentam as reservas externas). Portanto, sabe que se seus credores deixarem de investir, será impossível ter déficit público e será vital que o estoque da dívida seja pequeno, para ser possível honrar seu serviço e evitar uma moratória.
A ingenuidade vem da conclusão que, se a lógica do regime é esta, a realidade também o será, independentemente das pressões políticas. Na Argentina nada disto aconteceu. Entre 1991 e 2.000, lembrou Murphy, a economia argentina cresceu 42%, mas os gastos públicos subiram 90%. A dívida federal quase duplicou, para 45,9% do PIB; o gasto com juros subiu para 5% do PIB.
Em vez de gerar superávits primários quando crescia, para reduzir a dívida e precaver-se contra choques futuros, a Argentina continuou a gerar déficits. Os choques externos, desde 97 (crise russa, desvalorização brasileira, queda nos preços das "commodities" e valorização do dólar), foram interpretados como "transitórios", diz Murphy, e decidiu-se enfrentá-los elevando ainda mais a dívida.
O resultado é que, quando o mercado fechou-se, o tamanho do ajuste, via redução de preços e salários (especialmente públicos) tornou-se politicamente complicadíssimo. Na lógica do "currency board", o déficit tem que ser zerado, o dinheiro das províncias controlado, os salários e aposentadorias do setor público têm que cair e a política trabalhista precisa ser flexível. Em Hong Kong, que também tem "currency board", esta disciplina tem sido possível. Na Argentina, a gigantesca crise política mostra que é difícil compatibilizar um regime deste tipo com países democráticos, onde há direitos e votos trabalhistas.

CelPinto@uol.com.br



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