São Paulo, Segunda-feira, 23 de Agosto de 1999
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ARTIGO

A memória não se anistia

JANIO DE FREITAS

Quem menos admitiu a anistia veio a ser quem mais a invocou e mais a ela se apegou, nos 20 anos desde sua decretação. Os que, até o último instante de sua ocupação do poder, foram incapazes de algum gesto de compreensão simplesmente humana, para nem falar em tolerância, tornaram-se os defensores do "esquecimento total".
Em artigo no décimo aniversário da anistia, atribuí sua aplicação (não a decretação) a dois fatores. "O primeiro, a persistência do então presidente Figueiredo diante dos setores militares que se opunham a qualquer tipo de anistia. O outro foi o respeito do general Figueiredo à anistia que decretara e a imposição da mesma atitude aos histéricos. Já ninguém se lembra, parece, das ameaças da caserna à anistia, quando começaram a chegar os exilados." A anistia não foi obra dos militares. Foi, na origem, contra eles, e sua reação eliminou qualquer dúvida a respeito.
Nos dez anos seguintes ao artigo não surgiram elementos que alterassem aquela interpretação. Motivo bastante para manter, também, o seu final: "Não é humilhante, nem dignificante, reconhecer os méritos de Figueiredo na anistia. É dever de justiça, nada mais".
Mas, para o bem da dignidade que sobreviveu à ditadura, o esquecimento total pedido pela conveniência dos militares não aconteceu. Como esquecer que neste país, nestas cidades que habitamos, gente que enche a boca para falar de pátria cometia os crimes mais hediondos, contra pessoas indefesas, mulheres e homens, crianças até? Esquecimento não é ato de vontade.
Os comprometidos -física ou moralmente- com os crimes da ditadura contra a pessoa e contra as instituições foram agraciados com a ausência de punição penal, mas passaram a pretender que o país confunda anistia com amnésia.
É a memória sempre cultivada, no entanto, o melhor preventivo contra as repetições nefastas. Que o diga o destemor da memória sempre alimentado na Europa Ocidental e no Japão, com o inesgotável exorcismo da sua história neste século. Lembrar a anistia deve ser, no Brasil, reavivar na memória também o obscurantismo que vigorou no país por duas décadas.
É mais do que proveitoso acaso a sobreposição, agora, das celebrações da anistia à reabertura do inquérito sobre o atentado do Riocentro. A covardia desse crime incompleto reproduziu-se na indignidade dos comandos que acobertaram os criminosos, com investigações e conclusões forjadas. O novo inquérito, mesmo já posto em segredo como se na época do próprio crime, também é uma grata obra da memória viva na sua luta milenar contra a impunidade e o autoritarismo.



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