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ARTIGO
A memória não se anistia
JANIO DE FREITAS
Quem menos admitiu a anistia
veio a ser quem mais a invocou e
mais a ela se apegou, nos 20 anos
desde sua decretação. Os que, até
o último instante de sua ocupação do poder, foram incapazes de
algum gesto de compreensão simplesmente humana, para nem falar em tolerância, tornaram-se os
defensores do "esquecimento total".
Em artigo no décimo aniversário da anistia, atribuí sua aplicação (não a decretação) a dois fatores. "O primeiro, a persistência
do então presidente Figueiredo
diante dos setores militares que se
opunham a qualquer tipo de
anistia. O outro foi o respeito do
general Figueiredo à anistia que
decretara e a imposição da mesma atitude aos histéricos. Já ninguém se lembra, parece, das
ameaças da caserna à anistia,
quando começaram a chegar os
exilados." A anistia não foi obra
dos militares. Foi, na origem,
contra eles, e sua reação eliminou
qualquer dúvida a respeito.
Nos dez anos seguintes ao artigo não surgiram elementos que
alterassem aquela interpretação.
Motivo bastante para manter,
também, o seu final: "Não é humilhante, nem dignificante, reconhecer os méritos de Figueiredo
na anistia. É dever de justiça, nada mais".
Mas, para o bem da dignidade
que sobreviveu à ditadura, o esquecimento total pedido pela
conveniência dos militares não
aconteceu. Como esquecer que
neste país, nestas cidades que habitamos, gente que enche a boca
para falar de pátria cometia os
crimes mais hediondos, contra
pessoas indefesas, mulheres e homens, crianças até? Esquecimento
não é ato de vontade.
Os comprometidos -física ou
moralmente- com os crimes da
ditadura contra a pessoa e contra
as instituições foram agraciados
com a ausência de punição penal,
mas passaram a pretender que o
país confunda anistia com amnésia.
É a memória sempre cultivada,
no entanto, o melhor preventivo
contra as repetições nefastas. Que
o diga o destemor da memória
sempre alimentado na Europa
Ocidental e no Japão, com o inesgotável exorcismo da sua história
neste século. Lembrar a anistia
deve ser, no Brasil, reavivar na
memória também o obscurantismo que vigorou no país por duas
décadas.
É mais do que proveitoso acaso
a sobreposição, agora, das celebrações da anistia à reabertura
do inquérito sobre o atentado do
Riocentro. A covardia desse crime
incompleto reproduziu-se na indignidade dos comandos que
acobertaram os criminosos, com
investigações e conclusões forjadas. O novo inquérito, mesmo já
posto em segredo como se na época do próprio crime, também é
uma grata obra da memória viva
na sua luta milenar contra a impunidade e o autoritarismo.
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