São Paulo, Segunda-feira, 23 de Agosto de 1999
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20 ANOS

Estigmatizado pelos militares, ex-governador pensou em voltar do exílio antes da aprovação da lei

Planos de Brizola ameaçaram a anistia

RAYMUNDO COSTA
do Painel, em Brasília

A aprovação da Lei de Anistia correu vários riscos. O maior deles -desconhecido até agora- foi a decisão do ex-governador Leonel Brizola de voltar ao país, em fevereiro de 1979.
Na época, os militares não tinham um projeto de anistia definido. Mas havia mandados de prisão aguardando por Brizola nos aeroportos. Ex-governador do Rio Grande do Sul, Brizola era o líder político pré-64 mais estigmatizado pelos militares.
Vinte anos após a sanção da Lei de Anistia, sabe-se que, se Brizola cumprisse seu intento, certamente seria preso. Pior ainda, poderia ser assassinado, como temia então o general João Baptista Figueiredo, o que liquidaria de vez com o projeto de anistia.
Figueiredo já havia sido ungido no Colégio Eleitoral, mas ainda não tomara posse, quando foi informado da decisão de Brizola pelo deputado gaúcho Nelson Marchezan (então na Arena), que o assessorava no escritório de transição montado em Brasília.
"Isso causa problemas enormes ao projeto de revisão das punições", foi a reação inicial de Figueiredo, segundo o testemunho de Marchezan.
O deputado ganhara a confiança do general durante a campanha para a eleição do sucessor de Ernesto Geisel no Colégio Eleitoral. Atuara principalmente no Congresso, onde ainda era forte a presença do "grupo frotista", constituído por parlamentares que apoiavam os sonhos presidenciais do ex-ministro do Exército Sylvio Frota.
Figueiredo abriu o jogo para Marchezan:
1) se Brizola voltasse, iria emperrar o projeto de revisão das punições. No mínimo, o atrasaria;
2) Brizola seria preso ainda no aeroporto;
3) Incendiaria os grupos militares radicais, que impunham resistência ao projeto.
Em um quadro desses, concluiu Figueiredo, Brizola corria risco de vida. O general tinha bem frescas na lembrança as mortes do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, ocorridas quando ambos se encontravam presos em dependências do Exército. "Se acontece uma coisa dessas, cai por terra tudo o que nós queremos construir", afirmou Figueiredo.
Marchezan pediu então autorização para passar essas informações ao interlocutor que lhe revelara as intenções de Brizola, o publicitário Luiz Mendes, um dos três sócios da agência MPM, uma das grandes da época, e contraparente do ex-governador. Mendes e Marchezan se encontraram no gabinete do senador Petrônio Portela, futuro ministro da Justiça, onde estava também o senador mineiro Francelino Pereira.
Portela pediu a Mendes que dissesse a Brizola que aguardasse no exílio, pois o novo governo faria a anistia e ele seria beneficiado.
"Posso contar a ele que o sr. disse isso?", perguntou Mendes. "Se você disser isso, eu tenho aqui na sala duas testemunhas (Marchezan e Francelino) de que eu não falei com você", foi a resposta.
Mendes passou o recado. Brizola perguntou como ele sabia. "Palpite", respondeu.

Exemplo espanhol
Depois de um longo exílio no Uruguai, Brizola estava nos Estados Unidos. Não falava inglês, não se adaptara ao modo de vida norte-americano e não falava de outra coisa a não ser da volta. Sabia do projeto de anistia do MDB, que não o incluía, o que só aumentava suas dúvidas sobre um eventual projeto dos militares.
Em fevereiro, enquanto Figueiredo discutia sua situação com Marchezan, ele se aproximara do deputado Thales Ramalho, do MDB, que se encontrava em Nova York para exames de saúde. Ramalho viria a ser decisivo, dois meses mais tarde, para demover Brizola da idéia fixa de voltar.
Em maio de 79, antes de uma nova viagem a Nova York, Ramalho fez uma visita formal a Petrônio Portella, já ministro da Justiça, sob o pretexto de despedir-se. Ramalho puxou o assunto.
Perguntou quando o projeto de anistia seria enviado ao Congresso, pois não queria estar ausente durante a votação.
"Pode viajar tranquilo, nós vamos mandar nos últimos dias de junho, para haver o debate durante o recesso." Um erro do governo, segundo avalia hoje Ramalho, pois permitiu que o senador Teotônio Vilela tomasse conta do projeto. Em seguida, Portela puxou algumas folhas da gaveta e mostrou ao deputado: "Olha, o projeto está aqui. Pode ler. Veja que é melhor que o de vocês".
De fato, o projeto do governo incluía Brizola e Miguel Arraes, o que não ocorria com o do MDB, devido a um "erro técnico", de acordo com Ramalho. Era a deixa que Portela esperava para falar sobre a nova viagem do deputado. "Você vai encontrar com o Brizola. Diga que está incluído."
Em Nova York, após as dificuldades iniciais, Ramalho dobrou Brizola aos poucos. "Você não desce no Brasil. Pior do que isso, vai atrapalhar todo um trabalho, todo um esforço que foi feito."
A resposta de Brizola revelava seus planos: "Mas o Carrillo chegou antes e desembarcou", repetia. Referia-se a Santiago Carrillo, secretário-geral do Partido Comunista espanhol, que, em 1976, voltou ao seu país antes da anistia, após a queda da ditadura franquista, e passou a viver na clandestinidade. Brizola acabou trocando Nova York por Lisboa e só voltou após a sanção da lei, no dia 28 de agosto de 1979.


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