São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 2002

Texto Anterior | Índice

REGRAS DO JOGO

Revolução dos bichos

LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO

É auspicioso ter dois candidatos à Presidência da República com a formação e o preparo de Lula e Serra. Não são aventureiros. Têm visão histórica do Brasil. São dois homens capazes, cada qual a seu modo, de governar com altivez e de estabelecer bases para a inclusão social de milhões de pessoas que hoje vivem na fronteira da mais absoluta miséria. Sabem da complexidade desse grande desafio.
Talvez seja ingenuidade imaginar que pudesse ser diferente. Mas Lula e Serra são melhores -infinitamente melhores- que os candidatos Lula e Serra que estão expostos ao crivo do eleitor.
Em "A Revolução dos Bichos", de George Orwell, a violação de princípios se dá após a tomada do poder. No processo eleitoral, é instrumento de aquisição do poder.
Lula e Serra, diferentemente de suas candidaturas, devem olhar com desconforto íntimo as notícias sobre a concessão de uma emissora de TV para Gugu Liberato ou sobre a exploração eleitoral de programas sociais da prefeitura de São Paulo e do governo de Mato Grosso do Sul.
Serra e Lula, homens progressistas, devem sentir certo incômodo pessoal a cada cerimônia evangélica, indicativa de que, por exemplo, a idéia da união civil entre homossexuais não é "prioridade".
Diferentemente de suas candidaturas, Lula e Serra devem padecer algum tipo de constrangimento ao abraçar os Sarney, ACM e Roriz, que personificam o que há de mais atrasado no país.
Protegido por uma blindagem política extremamente eficaz, tarefa facilitada pela queda da popularidade do governo FHC e pelo desejo generalizado de mudança, Lula caminha para a vitória com a promessa, não para o eleitorado, mas para a oligarquia e para a elite empresarial que agora o apóiam, de desconstruir ideologicamente o PT -o que, ainda que pareça paradoxal, pode impulsionar seu crescimento orgânico.
Acossado pela perspectiva de seu discurso não ser ouvido pela multidão de eleitores, tarefa aparentemente impossível pela falta de popularidade do governo FHC e pelo desejo geral de mudança, Serra e o PSDB se apóiam no senso comum em matéria de medo e de segurança pública.
Lula deu o tom do segundo turno ao recusar o debate com o oponente. Quem diria? Não explicita nada de seu pensamento e, como que por encanto, não perde um voto sequer. Serra clama pelo debate, acusa o adversário de dissimulação e, como que por encanto, ninguém o escuta.
A imprensa, ainda movida pela intenção de revelar "escândalos", indicou, aqui e ali, ingredientes do processo de despurificação das duas candidaturas, mas não soube transmitir as dimensões verdadeiras dessa catarse eleitoral pelo avesso.
Entre as muitas pautas não publicadas pelos grandes jornais, está o conteúdo do diálogo político, silencioso e tenso, entre Lula e Rainha, líder do MST, que, dizem, mofa em alguma cadeia do interior de São Paulo.
Quem sabe, para vencer, seja necessário ceder ao furor mercadológico. Talvez iludir, enganar, seja uma das regras do jogo. Há quem diga que eleição é eleição, que governo é governo e que sempre haverá momentos de reafirmação de princípios após a posse. Pode ser tarde.
A solidão e a melancolia que costumam vitimar nossos governantes em fim de mandato não são culpa do arquiteto do Palácio da Alvorada -tão austero e tão bonito.

lfcarvalhofilho@uol.com.br


LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO, advogado criminal e articulista da Folha, escreve às quartas nesta coluna


Texto Anterior: Luiz Henrique: Candidato diz que está em cruzada contra oligarquias
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.