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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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JANIO DE FREITAS

Painel dos sonos

Nem sempre, ou raramente, é possível responder as cartas de leitores, mas são, todas, como prêmios ao jornalista destinatário: mesmo que iradas, dão prova de uma atenção pessoal que nem sempre, ou raramente, a maioria do trabalho jornalístico tem com os leitores. Pois hoje, para retomar contato, respondo a uma carta. Aquela que indagou, no Painel do Leitor de terça-feira, se "o governo, em especial Lula, dorme direito" depois de ler as críticas que lhe são feitas.
Dorme. Não porque, sugere a expressão japonesa que deu nome a filme, "o homem mau dorme bem". Não é o caso de Lula. O que se passa é que o Lula presidente se elevou, por ação própria, a um nível acima dos seres suscetíveis de preocupações, incertezas e outros pesares simplesmente humanos. No atual ciclo de presidentes civis, os únicos a dar sinais de aflição com o peso de suas responsabilidades foram José Sarney e Itamar Franco. Lula incorporou-se aos ungidos Fernandos. É um predestinado, um escolhido, como nos comunicou uma frase com a delicadeza de não ter explicitude chocante: "Deus não me trouxe de tão longe para nada".
Quem, senão um ser especial, seria capaz de dizer apenas, diante do sofrimento estúpido exigido a tantos idosos em estado lastimável, que Ricardo Berzoini "fez um gol contra"? Este breve comentário passou batido por aí afora, criticado tão só como reprimenda insuficiente a Berzoini. Gol contra, até Berzoini sabe, é gol contra o próprio time. No caso, portanto, contra o governo, contra a imagem do governo. O que, de fato, não precisava de mais do que o comentário ligeiro e bem humorado de Lula.
Desde os anos boçais da ditadura, porém, o poder não comete um ato de tamanha desumanidade, como foi a suspensão do pagamento de aposentadorias e pensões para que mesmo os inválidos, os doentes e os esgotados pelos anos se pusessem em filas ao relento, para provar com suas precariedades que sobrevivem apesar do INSS.
Se a legislação de direitos humanos e o Estatuto do Idoso não fossem bastantes contra a decisão governamental, até o seria, lembrando o bravo Sobral Pinto, a Lei de Proteção aos Animais. Mas nada se opôs à perversão do poder.
Não exigiria muito trabalho encontrar, na legislação criminal, artigos com que brindar a autoria da perversidade deliberada e reafirmada. Mas nada aconteceu. Assim como nada aconteceu à subsequente decisão de Berzoini, de ignorar deliberação judicial a propósito da reposição de partes usurpadas a pensões e aposentadorias.
Seria boa notícia, se tivesse mais do que palavras, a divulgada por Cristovam Buarque, ministro da Educação, segundo a qual Lula "ficou preocupado, triste e descontente ao saber que o trabalho infantil aumentou", a partir da sua posse, em 50% nas seis principais regiões metropolitanas. Ainda bem que um outro ministro dispensou, mesmo que recorrendo a meias verdades, um diagnóstico atribuível a oposição: "O aumento do trabalho infantil deveu-se ao ajuste que tivemos de fazer e que provocou aumento do desemprego temporário, mas isso já passou, e a que o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil teve de ser controlado para poder expandir nos próximos três anos".
Ministro dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda abusou do suposto direito político de abrandar as denúncias da realidade. O desemprego não se mostrou temporário, nem passou; o programa de redução do trabalho infantil não foi "controlado", foi paralisado, e não para expandir nos próximos três anos, mas porque Antonio Palocci Filho decidiu que seus recursos seriam cortados, para engordar o superávit acordado com o FMI. Apesar dos malabarismos, Nilmário Miranda deixou claro que o aumento do trabalho infantil é a consequência lógica, e sem surpresa, da política econômica de um presidente que precisou trabalhar ainda na infância. Talvez ainda não fosse um predestinado.
Se Lula ficou "preocupado, triste e descontente", deve ter sido uma reação passageira -além de equivocada, se consideradas as decisões pessoais que levam ao maior trabalho infantil. Recebida a notícia durante o dia, já à noite a platéia presidencial divertia-se com o filme dos Cassetas, em mais uma das sessões semanais em que o espetáculo pretendido pela Presidência está menos na tela do que fora dela, para daí passar à tv e às primeiras páginas.
Lula, por certo, dorme bem, ou o governo seria outro. Mas o sono dos justos é o dos que têm dormido mal, angustiados pelo "ajuste" que a tudo desajusta mais, exceto os bancos e congêneres.


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