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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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DIRETAS-JÁ - 20 ANOS

OPINIÃO

Aprendendo democracia

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os últimos anos da década de 70 e os primeiros da seguinte foram de aprendizado democrático para todos nós.
Recordo-me que, logo depois de lançado candidato ao Senado por um grupo de intelectuais democráticos em 1977, recebi um recado de Lula, então nos primórdios de sua liderança, por intermédio de Chico de Oliveira. Lula queria ver-me.
Fui a São Bernardo. Deslumbrei-me com o porte do sindicato e a disposição dos dirigentes. Lula disse que me apoiaria, embora não contasse com muitos recursos políticos para tanto. O principal era Almir Pazianotto, advogado do sindicato e deputado estadual pelo MDB, que votaria em mim na convenção do partido.
Perguntei a Lula sobre o porquê do apoio. A resposta foi contundente: porque você não fica dando lições aos trabalhadores nem se arroga a ser a nossa voz. Transparecia na resposta a visão política de Lula, além de uma referência indireta ao senador Montoro.
Depois, Lula virou quase um mito. Chefiou greves, foi cassado, preso e tornou-se capa de tudo quanto é revista. Fizemos juntos, e com Almino Affonso, o Encontro de São Bernardo. Tateávamos o rumo a tomar na política. Eu havia estado presente, com outros companheiros, prestando solidariedade ativa a todas as greves. Fui ao enterro da mãe de Lula (ele estava preso, mas compareceu) para emprestar, como nas greves, o apoio simbólico de um senador suplente.
Em 79, começou a pulsar mais forte o partido que a causa democrática. Fiquei no MDB, que ganhou um P e tornou-se o PMDB, por discordar da visão dos que formaram o PT, que me parecia estreita: não gostavam de alianças e imaginavam poder mudar o país sozinhos. As restrições começaram a ser fortes para quem não tinha o mesmo pensamento.
No início daquele ano ou do anterior, no final de uma das greves de São Bernardo, Djalma Bom fizera o discurso de agradecimento aos que haviam apoiado o movimento, referindo-se especificamente a mim. Já no período de formação do PT, voltei a São Bernardo para prestar solidariedade a outra greve. Lembro-me da vaia que recebi e de Leila Abramo me consolando.
Por isso, o comício da praça Charles Miller foi quase só do PT e dos grupos de esquerda a ele ligados. A causa, a das eleições diretas, era a mesma de muitos. Os eleitos para falar por ela deviam ser poucos.
Ainda assim, fui ao comício. Fui dos poucos, se não o único, de fora da órbita da esquerda petista. Estava preparado para receber a vaia. Ela não ocorreu. Coube a mim dar a infausta notícia da morte do senador Teotonio Villela. O luto e as saudades antecipadas silenciaram as gargantas e criaram uma ponte para a confraternização que permite saltar o sectarismo entre irmãos da mesma causa. Foi o que se viu no grande comício de 25 de janeiro de 1984, na praça da Sé, inspirado por Montoro.


Fernando Henrique Cardoso, 72, é sociólogo. Foi presidente da República (1995-2002) e ministro das Relações Exteriores (1992-93) e da Fazenda (93-94).


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