São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2002

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NO PLANALTO

Companhia de Jesus é reprovada na filantropia

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Os jesuítas aportaram no Brasil em 1549, pouco depois de Cabral. Começaram catequizando índios. Hoje, vendem ensino e seus derivativos a uma vasta clientela bem-posta. Têm escolas espalhadas por vários Estados.
Dividem o país em regiões. Numa delas, que chamam de região centro-leste, encontra-se assentada a SEAS (Sociedade de Educação e Assistência Social). Frequenta a lista das 200 maiores filantrópicas do país.
A SEAS tem sede em Belo Horizonte. Esparrama-se por Juiz de Fora, São Paulo, Goiânia e Brasília. Ao todo, são oito unidades. Todas geridas por padres jesuítas.
Estima-se que seu faturamento anual passe dos R$ 40 milhões. Mero regato a compor a corredeira que faz girar o moinho financeiro da Companhia de Jesus. O grosso do dinheiro é obtido no ramo de escolas privadas e no comércio de livros.
Portadora de certificado de filantropia da Previdência e de certidão de utilidade pública da Justiça, a SEAS, assim como o restante da grande rede católica de ensino (1.412 escolas e 34 universidades em todo país), não paga impostos. Em troca, deveria destinar pelo menos 20% de sua receita a programas que lançassem bóias aos náufragos sociais. Deveria, mas...
Fiscais da Receita e do INSS fizeram incursões pela contabilidade da SEAS. Constataram que a benemerência praticada é ínfima perto do benefício tributário usufruído: oscila, conforme documentos oficiais, entre 3,2 % e 8,6% da receita. Um despautério.
Em representações endereçadas ao CNAS (conselho filantrópico da Previdência), o fisco e o INSS pediram a cassação do certificado que mantém os jesuítas longe dos guichês do erário. Seria lógico que, munida de dados colecionados por seus próprios fiscais, a representação governista no conselho (nove membros, de um total de 18) agisse de modo coordenado, em defesa dos cofres públicos.
Em Brasília, porém, muitas vezes a lógica tem cara de lógica, tem cauda de lógica, mas muge como absurdo. Quando a SEAS já se encaminhava para o cadafalso, foi socorrida por alguém credenciado a atuar como inquisidor.
Chama-se Gilson Assis Dayrell. Representa no CNAS o Ministério do Trabalho. Notabiliza-se pela indulgência no trato com entidades ligadas à Igreja. Pediu para ver o processo. Saiu-se com um relatório inusitado: manda às favas o trabalho da fiscalização. E sugere a manutenção do certificado filantrópico da SEAS.
Intrigado, João Donadon, que representa a Previdência no CNAS, comprou briga com Dayrell. Pediu vista do processo. E jogou sobre a mesa um parecer que endossa o trabalho dos fiscais e corrobora o pedido de cassação do certificado.
Os dados da fiscalização são eloquentes. A cota de filantropia da SEAS é artificialmente engordada por gastos como a concessão de bolsas de estudo a dependentes de professores e funcionários, uma obrigação consagrada em convenção coletiva de trabalho.
O logro foi detectado nas duas escolas do grupo: o Colégio dos Jesuítas de Juiz de Fora e o Colégio Loyola de Belo Horizonte, assim batizado em homenagem ao santo espanhol Inácio de Loyola (1491-1556), fundador da ordem religiosa.
Os "gastos" assistenciais são vitaminados também por repasses monetários feitos a outras entidades filantrópicas e a unidades do mesmo grupo. Entre as beneficiárias está um apêndice da SEAS na cidade de São Paulo. Chama-se Edições Loyola.
Está-se falando de uma das dez maiores editoras do país. Seu carro-chefe são os livros religiosos. Mas imprime de obras de auto-ajuda a infantis e didáticos. Sua carteira de clientes inclui até o Ministério da Educação.
Analisaram-se os balanços da SEAS relativos ao período de 1993 a 1997. Expurgadas as impurezas filantrópicas, registraram-se percentuais de benemerência inferiores a 10%. Em ordem cronológica, começando de 1993: 3,20%, 6,70%, 7,09%, 7,90% e 8,60%.
Há mais: embora considere doações que faz a outras entidades como gastos sociais, a SEAS exclui do bolo de gratuidades as doações que recebe de pessoas físicas e jurídicas. Um artifício contábil que, só entre 1994 e 1997, expurgou do cálculo de filantropia R$ 26,3 milhões, em valores da época.
De resto, parte do investimento "filantrópico" da SEAS serve mais à Igreja do que à malta. Drenam-se recursos, por exemplo, para o Instituto Santo Inácio, escola de formação de padres situada em Belo Horizonte. Ou para a Vila Fátima, uma chácara que abriga, nos arredores da capital mineira, uma casa de retiros espirituais e encontros religiosos.
Há também a Casa da Juventude em Goiânia, voltada à "promoção da juventude", seja lá o que isso signifique. E ainda um Centro Cultural em Brasília, que promove cursos de formação espiritual e religiosa frequentados inclusive por parlamentares.
Em defesa da SEAS, o padre Bahige Schahin, um dos procuradores da entidade, diz: "No instante em que renovou o nosso certificado de filantropia, o CNAS fez publicar no "Diário Oficial", em 23 de dezembro de 1997, decisão que concluía que aplicamos em gratuidade 20,1% da receita bruta. Agora estão questionando. Mas nós fazemos, não tenha dúvidas".
O embate entre Gilson Dayrell e João Donadon, os dois conselheiros governistas do CNAS, gerou uma nova visita do INSS aos livros da SEAS. Uma espécie de prova dos nove, ainda em curso. "Não vão achar nada de errado", diz o padre Schahin.
A TV brasileira não sabe o que está perdendo. Transformado num show à "Big Brother", o CNAS seria campeão de audiência. É pena que sejam sonegadas ao público cenas como o barraco armado entre Dayrell e Donadon, em que o governo sai no tapa consigo mesmo.
Entrada em anos, a trupe do CNAS, que inclui até uma veneranda freira, não tem muito a oferecer em termos de músculos e glúteos. Ainda assim, sabendo-se patrocinador da fuzarca, o contribuinte não perderia nenhum lance.
Aos poucos, o conselho social da Previdência vai assumindo ares de desnecessário levado longe demais. Será divertido ver até onde FHC vai permitir que o lodo escorra.



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