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RAIO-X SAÚDE
Vitória obtida em 99 fica comprometida pelo recrudescimento
posterior da epidemia
Especialistas culpam Serra por fracasso com a dengue
MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO
Ao assumir o Ministério da Saúde, em 31 de março de 1998, José
Serra anunciou o seu objetivo
imediato: combater o mosquito
transmissor da dengue que provocava então uma epidemia no
Rio, em Minas e em outros Estados. Comparou o desafio a uma
"guerra" na qual o triunfo seria
das "forças da saúde".
Quatro anos depois, na sexta retrasada, seis dias antes de deixar o
ministério para se dedicar a campanha à Presidência, Serra, 59, desembarcou no Rio. Chegou em
meio a uma nova epidemia. O
economista que assumiu a Saúde
com a promessa de derrotar a
dengue deixa o governo marcado
pelo recrudescimento da doença.
A Folha mostra a seguir que a
dengue se expande apesar de recorrentes alertas. Cientistas afirmam que o Ministério da Saúde
cometeu erros na transferência da
execução do combate antidengue
às prefeituras, que se precipitou
ao dispensar milhares de agentes
sanitários e que não coordena,
uniformiza ou monitora suficientemente as ações municipais.
Para os especialistas, professores de quatro universidades, o governo errou ao abandonar um
projeto antidengue de 1996 e ao
não assegurar a continuidade de
iniciativas. A erradicação da enfermidade é considerada quase
inviável, mas o seu alcance poderia ser muito reduzido.
Nova epidemia
Em 1998, o quarto ano do primeiro governo FHC, o Brasil registrou o maior número de casos
de dengue desde que a notificação
se tornou obrigatória, em meados
da década de 1990: 559.237.
Como ocorre historicamente
em epidemias da doença, os surtos suscitam o revigoramento de
ações preventivas. Em 1999, foram notificados 209.294 casos,
uma queda de 63%.
Desde então, os números crescem. Em 2000, houve 238.995 casos (14% a mais). Em 2001,
399.306 (aumento de 67% em relação ao ano anterior). Em 2002,
já em fevereiro somam-se quase
tantas mortes (25) pelo tipo de
dengue que causa febre hemorrágica quanto em todo o ano passado (28). A evolução da dengue no
Rio, escolhido por Serra em 1998
para sua primeira viagem como
ministro, é mais dramática.
A epidemia de 1998, que estimulou a "guerra" anunciada pelo
ministro contra o Aedes aegypti, o
mosquito transmissor, teve
32.382 casos no Rio.
Nos anos seguintes, foram colhidos os frutos de um programa
preventivo, no qual se destacavam mais de 5.000 agentes sanitários contratados havia anos em
regime temporário pela Funasa
(Fundação Nacional de Saúde), o
órgão executivo do ministério.
Em 1999, houve 9.083 casos. Em
2000, menos ainda: 4.281. O ano
de 2001 foi o primeiro em que os
mata-mosquitos da Funasa, dispensados, não atuaram em nenhum dos 12 meses do ano anterior. A dengue, então, voltou mais
intensa do que quando Serra assumiu -68.438 pessoas infectadas, mais que o dobro das 32.382
de 1998. Já há 39.502 notificações
em 2002.
Alertas
A dengue não é invenção de Serra ou de FHC -trata-se de velha
conhecida dos brasileiros. É infecciosa e febril. Na forma hemorrágica, pode matar. Na clássica também, mas o risco é menor.
Entre as décadas de 20 e 50, o
Brasil erradicou o Aedes aegypti,
que voltou nos anos 70. Em 1986,
houve epidemia. A dengue é uma
doença endêmica (tem presença
contínua em certas regiões) que
às vezes se torna epidêmica (ao
superar significativamente a incidência prevista), como hoje no
Rio e em Mato Grosso do Sul.
Não faltaram nos últimos anos
alertas sobre a iminência de epidemias. Em 1996, uma reunião
ministerial presidida por FHC sacramentou o mais ambicioso projeto contemporâneo contra a dengue no país. O então ministro da
Saúde, Adib Jatene, coordenou a
elaboração do programa.
Seriam gastos ao todo R$ 4,5 bilhões, em três anos, em educação
comunitária, combate químico
(inseticidas) e, em destaque, saneamento, que consumiria mais
da metade da verba.
Jatene deixou o governo em novembro de 1996. De empreitada a
ser tocada por nove ministérios o
projeto ficou a cargo da Funasa. Já
em 1997, o sucessor de Jatene,
Carlos Albuquerque, só gastou R$
248 milhões dos R$ 444 milhões
que o Orçamento permitia para
atacar a dengue. Com Serra, o ministério, alegadamente por falta
de recursos, continuou sem implementar o projeto de Jatene.
Em 1998, um plano operativo da
Funasa previu que seriam necessários 10.461 agentes sanitários no
Rio concentrados na aplicação de
inseticidas. Havia 1.638 efetivos
da fundação e 5.243 contratados
por temporada -um déficit de
3.580. Em 1999, os temporários
eram 5.792. Foram demitidos no
fim de junho daquele ano.
Hoje há cerca de 2.600 funcionários da Funasa e cerca de 3.500
contratados pelos municípios do
Estado do Rio. No meio da atual
epidemia, o ministério providenciou uma força-tarefa de mil
agentes de outros Estados (R$ 4,3
milhões mensais) e 1.300 soldados
do Exército e da Marinha.
Em 1º de julho de 1999, o procurador da República Rogério Nascimento pediu à Justiça o adiamento da dispensa dos 5.792 mata-mosquitos até que as prefeituras pudessem treinar pessoal.
Em 5 de agosto de 1999, num
despacho do processo dos mata-mosquitos, a juíza federal Lana
Maria Fontes Regueira escreveu:
"Estamos diante de uma situação
de consequências catastróficas,
haja vista a iminente ocorrência
de dengue hemorrágica".
Num depoimento à Justiça no
ano passado, o coordenador de
Vigilância Ambiental da Funasa,
Guilherme Franco Neto, ex-coordenador regional no Rio, disse
que foi contrário à dispensa dos
mata-mosquitos. Em abril de
2001, a Coordenação de Dengue
do município do Rio previu uma
epidemia no verão de 2002 com
grande incidência de febre hemorrágica. A sugestão de contratação de 1.500 agentes e compra
de equipamentos foi ignorada.
O prefeito Cesar Maia (PFL)
exonerou em seguida seu secretário da Saúde, Sérgio Arouca
(PPS), que o alertara. A Funasa foi
informada, em reunião no Rio,
sobre a ameaça de epidemia.
Cada um por si
Em 1997, o Orçamento previa
despesas federais de R$ 444 milhões com a dengue (US$ 389 milhões em 31 de dezembro daquele
ano). Foram gastos R$ 248 milhões (US$ 218 milhões). Em
2002, a Funasa pretende gastar R$
475 milhões (hoje US$ 196 milhões) -R$ 360 milhões para Estados e municípios e R$ 115 milhões de recursos adicionais. Em
dólar, há menos dinheiro agora
-quando o real não goza mais da
relativa paridade com a moeda
americana- que em 1997.
A Funasa não informou quanto
gastou em 2000 e 2001, quando
parte das verbas contra a dengue
foi enviada aos municípios em
pacotes gerais contra doenças
transmissíveis, sem estabelecer a
enfermidade-alvo.
Nos últimos anos, a Saúde aprofundou no combate ao Aedes
aegypti a política de descentralização e municipalização prevista
pela Constituição e pela Lei Orgânica de 1990. Os mata-mosquitos
contratados pela Funasa foram
dispensados em todo o país porque a fundação repassou a verba
para os municípios executarem
as ações antidengue.
"A descentralização da saúde
não foi feita de forma bem planejada no país", diz o epidemiologista Roberto Medronho, diretor
do Núcleo de Saúde Coletiva da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro. "Muitas vezes não há capacitação e recursos. O afastamento dos mata-mosquitos no
Rio foi uma atitude irresponsável.
Precisaria de transição."
Embora uma portaria permita a
intervenção federal nas ações de
combate à dengue dos municípios, o Ministério da Saúde nunca
tomou iniciativa dessa natureza.
Entregue às prefeituras, a política antidengue não tem uniformidade. Em Nova Iguaçu (RJ), a
prefeitura contratou uma agência
de extermínio de baratas para
abater larvas e mosquitos. No
Rio, a tarefa é da empresa de lixo.
"O ministério tem obrigação de
fazer a vigilância do dinheiro que
está repassando", diz o diretor do
Instituto de Doenças Tropicais da
Universidade de São Paulo, Marcos Boulos. "Tem de monitorar e
uniformizar o trabalho."
Boulos aponta outro problema:
uma cidade pode implantar um
projeto vitorioso contra a dengue.
Se o município ao lado não tiver o
mesmo comportamento, "seus"
mosquitos contaminarão o vizinho. "É jogar dinheiro pelo ralo."
Para o infectologista Rivaldo
Venâncio da Cunha, professor de
doenças infecciosas e parasitárias
da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, o "fracasso começa no abandono do projeto de Jatene. Nos últimos anos, deu-se
ênfase quase exclusiva ao controle químico. A utilização de inseticidas é feita irracionalmente. Em
locais como Campo Grande e
Fortaleza, as larvas desenvolveram resistência a inseticidas".
O coordenador de pós-graduação em Medicina Tropical da
Universidade Federal de Minas
Gerais, Manoel Otávio da Costa
Rocha, destaca outros três problemas: a falta de mobilização social "adequada" contra a dengue,
a manutenção do bate-boca entre
esferas de poder sobre a culpa pelas epidemias e a falta de continuidade nas ações antidengue.
"Os mosquitos voltam a nível exponencial em dois, três anos."
No mês passado, foram notificados (dados parciais) 45.873 casos de dengue no país, 41% a mais
que os 32.592 de janeiro de 2001.
O impacto da epidemia do Rio fez
com que um personagem da novela "O Clone" fosse "infectado"
pela dengue. Não deixa de ser irônico: o ministério vem investindo
pesado em merchandising nas
novelas da Rede Globo para promover campanhas de saúde. Ao
sair de cena, Serra viu uma derrota sua ilustrar um folhetim de TV.
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