São Paulo, sábado, 24 de agosto de 2002

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INCONSCIENTE ELEITORAL

Técnicos, jornalistas e marqueteiros

MARCELO COELHO

Demorei um tempo para aprender que a Embratel era o 21. Depois veio a Intelig, que é 23, eu acho, mas saber que o camisa 23 na seleção brasileira é o atacante Kaká, e que esse também é o número de Ciro Gomes na eleição, aí também é exagero.
Havia algo de excessivamente montado e artificial na cena do jogador entregando a camisa 23 para Ciro, antes do jogo com o Paraguai. O Brasil perdeu, e a caprichada cena fotográfica terminou tendo efeito indesejado. "Pé-frio", cutucou a Folha. "Seleção apóia Ciro e apanha do Paraguai", disse o jornal Agora.
É provável que o leitor identifique nessas palavras o velho e bom espírito de porco dos jornalistas. Até mesmo os cronistas esportivos, mais suspeitos de passionalidade do que de malevolência, foram acusados nesta última Copa de torcerem contra o Brasil. Não havia espírito de porco contra o Brasil neste amistoso, mas sem dúvida houve prazer com o malogro do pequeno circo canarinho em torno de Ciro.
Há eleições em que tudo parece ser uma questão do Bem contra o Mal. Não tem sido esta a interpretação predominante, a meu ver, da disputa entre Lula, Serra, Ciro e Garotinho. Cada candidato tem seu pé na sombra, e mesmo se vangloria da impureza de suas alianças. Apontar contradições, incoerências, não cola muito se o candidato quer justamente dizer que mudou, que é tolerante, conciliador etc.
O tropeço com a camisa da seleção atendeu, creio, a uma demanda reprimida da imprensa. Minha impressão é que estas eleições, mais do que as anteriores, trazem consigo um embate corporativo, um jogo de rivalidades profissionais, que é subterrâneo e talvez prévio ao confronto dos candidatos.
A rivalidade, aqui, é entre entre jornalistas e marqueteiros. Nenhum candidato nestas eleições presidenciais é tão odiado quanto o foram Fernando Collor ou Paulo Maluf em outras épocas; nenhum candidato é tão rejeitado, talvez, quanto o são Duda Mendonça, Nizan Guanaes ou Nelson Biondi. Precisam inventar, quem sabe, um marqueteiro de marqueteiros.
O profissional do marketing, interessado em maquiar a verdade, é inimigo do jornalista, que quer -não digo descobrir a verdade sempre, mas pelo menos destruir a maquiagem.
O encontro de Ciro com a seleção ganha outras dimensões, aliás, dado o forte componente "elitista", "técnico", cientificista, da sua candidatura. O que Ciro tem de estourado não significa necessariamente algo de emocional; ele se irrita friamente e está pronto a desfiar números e argumentos técnicos.
Usar o futebol, nessas circunstâncias (o mesmo valeria para Serra), tem algo de inadequado.
De resto, a Copa do Mundo não produziu garotos-propaganda de boa qualidade. O mais bem-sucedido é Felipão. Tem a imagem do sujeito combatido e antipático, mas que chega lá, que é vitorioso, graças a...
Fico em dúvida. Graças a quê? À decisão de não convocar Romário? Ao seu comportamento turrão? À sua capacidade de não se importar com as críticas que recebeu? Talvez o sucesso de Scolari como garoto-propaganda se explique por outra coisa: é que sua atuação como técnico não teve nada de marqueteiro.
Ele vira garoto-propaganda por ser o tipo do sujeito que não faz propaganda de nada; daí sua credibilidade.
É a personagem-sonho de todo jornalista; coisa que nenhum candidato está disposto a ser neste momento.


Marcelo Coelho, colunista da Folha, escreve aos sábados nesta coluna



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