UOL

São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JANIO DE FREITAS

A tranquila justiça

Justo e feliz é o país cujo presidente pode dizer: "Olha só a fisionomia de seu presidente. Você acha que eu estou preocupado? Estou tranquilo".
Pode-se mesmo acreditar que Luiz Inácio Lula da Silva esteja tranquilo, como sugerem suas aparições e agora atesta a frase colhida pelos jornalistas Tereza Cruvinel e Merval Pereira, do "Globo", na entrevista coletiva presidencial. É pelo menos duvidoso, porém, que sua feliz tranquilidade reflita o país ou sobre ele se reflita.
A felicidade presidencial não precisa de explicação. E o que deveria ser sua contrapartida ou sua razão de ser, mas não é isso nem aquilo, pode ser apreendido, de tão óbvio, por umas poucas frases, sintéticas já por si. Tendo a Folha o privilégio de ser considerada, no governo, muito rigorosa com os atos e figuras governamentais, voltemos ao "Globo", e só com uns poucos exemplos do que nele merece as suas letras mais gigantescas:
"Renda do trabalhador despenca 16,4% no país" e, no subtítulo, "Foi a maior queda, na comparação com o ano anterior, já apurada pelo IBGE. Taxa de desemprego fica em 12,8%", em 21/8/03 (renda do trabalhador, não custa lembrar, é como os economistas e o engodo tecnocrático que invadiu as redações chamam o que, em linguagem decente, é salário -que não é renda).
"Ajuste deixa o social mais pobre", e no subtítulo, "Governo usou R$ 26,5 bilhões da Seguridade Social para garantir superávit primário", em 17/8 (isso mesmo, as verbas dos serviços sociais serviram para o governo apresentar, em suas contas, o saldo tão louvado pela mídia, grande empresariado e economistas como um êxito da política econômica).
"Juros comem quase 10% do PIB", e, no subtítulo, "Encargos da dívida, de R$ 142 bi, dariam para cobrir 17 vezes a verba para o social", em 18/8.
Mas os presidentes só olham para onde querem e, sobretudo, gostam muito de imaginar coisas. Se as ilusões fossem só para uso próprio, vá lá. São lançadas, no entanto, ao consumo do desprevenido. É o caso, por exemplo, da "garantia" que Luiz Inácio Lula da Silva vê ou imagina, se é que vê mesmo ou imagina mesmo, na sua "reforma" da Previdência. Assim, em uma das tantas vezes da mesma afirmação: "Ela faz justiça [ela é a "reforma" da Previdência, sim senhor]. Primeiro porque o objetivo é garantir que daqui a 20, 30 anos as pessoas tenham o direito de receber sua aposentadoria".
Fez bem o presidente em ficar no "primeiro porque", sem se aventurar a outro. O que disse não é verdade. A "reforma" que o governo faz nada garante em relação a pagamento de aposentados, que continuará dependendo da arrecadação governamental para cobertura do déficit entre as contribuições recolhidas e o pagamento das aposentadorias. Pelo mesmo desvio, a "reforma" nada garante quanto ao "direito" dos servidores e aposentados. Basta que o mesmo governo Lula ou algum outra resolva cortar mais um pedaço de direitos e use, para fazê-lo, os mesmos métodos de hoje -a troca de votos por cargos no governo e a substituição, nas comissões, de dezenas de deputados por outros da turma dos paus-mandados.
Direitos, a rigor, são o que menos a "reforma" respeita. Fazer as contas do que será retirado aos aposentados, com o desconto de 11% sobre o que passar de R$ 1.440 nas aposentadorias, é ser lançado no espanto. Quem receber o novo teto de R$ 17 mil, caso dos ex-ministros do Supremo Tribunal Federal, ao final do ano terá perdido R$ 22.250. O que vem a ser a perda de um mês inteiro de provento e mais 10 dias de outro mês.
Do mesmo modo, todo aposentado que receber qualquer importância acima de R$ 1.440, digamos R$ 2.000, ao final de cada ano terá recebido menos um mês inteiro e um terço do que esteja acima dos R$ 1.440. Para muitos, isso equivalerá à perda do 13º e de mais um pedaço de outro mês.
Os pensionistas não são atingidos só por perdas imensas, em relação a eles o governo esmerou: usou também, para a grande maioria, de perversidade explícita. Retira-lhes 30% dos proventos. E o que vem a ser isso? Em 13 pagamentos do ano, vem a ser a retirada de quatro meses de pagamento da pensão. Penso nos velhinhos e velhinhas que recebem insignificâncias, gastam o que não podem com remédios que aqui são os mais caros do mundo, e vão ter cortado um terço de sua pensão.
De volta à frase citada de Luiz Inácio Lula da Silva sobre a sua "reforma" previdenciária: "Ela faz justiça".


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Judiciário: TST torna efetivos 66 servidores sem concurso
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.