São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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BALANÇO

Em entrevista de 1999 que integra tese sobre seu mandato, FHC diz que ele e Miguel Arraes sabotaram ida de Ciro para o PSB

FHC achava que reeleição traria reformas

GUSTAVO PATÚ
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Em 1999, no início de seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso associava sua reeleição, inédita na história brasileira, ao conjunto de transformações econômicas e institucionais que promoveria no país.
Comparava-se então a estadistas como Margaret Thatcher, Helmut Kohl e Felipe González, cujas longas gestões revolucionaram, respectivamente, o Reino Unido, com o impulso (neo)liberal, a Alemanha, com a reunificação, e a Espanha, com a transição democrática.
O raciocínio de Fernando Henrique Cardoso está desenvolvido em uma entrevista concedida nos dias 23 e 24 de abril de 1999 à jornalista Mayla di Martino, 32, para uma tese de mestrado em Políticas de Desenvolvimento na América Latina, na London School of Economics.
A tese levou o título irônico de "It's Politics, Stupid! (É a Política, Estúpido!)", um contraponto à célebre frase do marqueteiro do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton ("É a economia, estúpido!) sobre o fator preponderante no resultado de uma eleição.
O trabalho, concluído em 2000, sustenta que o presidente Fernando Henrique Cardoso errou ao subordinar a política à economia. Em vez de viabilizar as reformas com sua reeleição, inviabilizou-as (leia texto nesta página). Dois anos depois, constata-se que as reformas tributária, trabalhista, administrativa e previdenciária ficaram pelo meio do caminho.
A entrevista mostra um FHC mais à vontade do que o habitual; afinal, nada seria publicado tão cedo. O presidente fala com franqueza de suas hesitações diante das crises internacionais, mas rejeita a idéia -abraçada pela tese- de que foi populista ao manter o real sobrevalorizado.
Conta bastidores de suas duas eleições, com comentários pouco abonadores, para dizer o mínimo, sobre personagens como o ex-presidente Itamar Franco, que o nomeou para o Ministério da Fazenda em 1993 e apoiou sua eleição ao Palácio do Planalto, e o ex-ministro da Fazenda Ciro Gomes, candidato do PPS à Presidência em 1998 e neste ano.
Leia a seguir alguns dos principais trechos da entrevista.
 

PRIMEIRA ELEIÇÃO - Logo depois que virei candidato [em abril de 1994], queria desistir da candidatura. Porque ela não crescia, o empresariado não dava bola, o Itamar [Franco] já começava a olhar aquilo com uma certa coisa. E não saía, não avançava o Plano Real porque a equipe econômica tinha medo, eles não queriam dar o outro passo, queriam ficar na URV [Unidade Real de Valor, passo inicial para a nova moeda]. O Pérsio [Arida, um dos idealizadores do real] queria ficar um ano com a URV. Foi preciso muita briga minha. Eles não queriam trocar [a moeda] em junho, mas aí eu exigi que a medida provisória marcasse a data de julho. Porque senão não tinha como.

REELEIÇÃO E REFORMAS - No mundo ocidental, quase todos os governos que deram certo duraram muito tempo. Quando eu fui à Inglaterra, em 95, houve um almoço na embaixada e a Margaret Thatcher [ex-primeira-ministra] foi ao almoço. Fez grandes rapapés e perguntou: "Quando tempo dura o seu mandato?" "Quatro anos." "E tem reeleição?" "Não." "Mas é ridículo, é impossível. Sua tarefa agora é tentar ser reeleito."
Na Europa, o [ex-premiê da Alemanha Helmut" Kohl ficou sei lá quantos anos, 20 anos, 15 anos; para os franceses, a Presidência é imperial, dura quase isso; o [ex-primeiro-ministro] Felipe González ficou na Espanha outro tanto; a Margaret Thatcher ficou um tempo enorme.
Enfim, as democracias ocidentais européias que se ajustaram e impulsionaram essas mudanças, todas elas tiveram governos de longa durabilidade, para dar continuidade à administração.

FUTUROLOGIA - Eu vou até fazer uma futurologia: dificilmente, no futuro, alguém vai se eleger duas vezes com maioria absoluta, como eu. Porque eu me reelegi não só porque estava fazendo essas transformações, mas também porque os partidos ainda não estavam acomodados a esse sistema, não tinham propostas.

ITAMAR - O que eu não sabia é que o Itamar queria voltar a ser presidente. Nunca passou pela minha cabeça. Porque ele tinha horror do governo. Ele tinha horror, ele se sentia mal, ele tinha enxaqueca, ele não gostava. Ele não gosta de administrar, a política dele é uma política pequenininha. De economia ele não queria saber; eu nunca despachei com ele, ele nunca leu o Plano Real. Eu disse: "Olha, Itamar, eu acho que eu tenho todo o direito de ser candidato. Eu nunca imaginei que você quisesse". "Ah, mas porque você nunca me falou de reeleição." "É verdade, mas também você nunca me falou que era candidato. Você tem todo o direito. Só acho uma coisa, você já foi o presidente, pensa bem, você vai ter condições de enfrentar uma candidatura vitoriosa? É chato. Não há problemas, se você quiser disputar, tudo bem. Agora, não é fácil. Eu vou lutar. Você tem que ter umas idéias diferentes das minhas e que sejam boas." "Ah, você pensa que só você tem idéias?" "Não, mas quando vejo uma idéia boa, eu pego."

CIRO - De alguma maneira, o Ciro [Gomes] foi obrigado a ir para o PPS, porque foi ficando sem partido. Eu também atuei nisso, até com o [presidente nacional do PSB, Miguel] Arraes, para o Ciro ficar sem partido, sem ter sustentação. Eu conversei com o Arraes, com quem tenho relações antigas. O Arraes não tinha muita simpatia pelo Ciro porque a irmã dele foi secretária do Tasso [Jereissati] e conhece o Ciro de perto, e quem conhece sabe que o Ciro não é uma pessoa de fácil convívio.

CRISE DA ÁSIA - Quando é que a coisa começou a ficar mais complicada? Crise da Ásia [em 97]. Eu estava em Cartagena de Índia [Colômbia], atrás de um altar, no telefone com o Malan. Eu com o [então] presidente de lá, o [Ernesto] Samper, aflitíssimo com as notícias que estavam chegando, mas fingindo que não era nada. Fui para a Ilha Marguerita [Venezuela], conversei com o [presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Enrique" Iglesias, falei ao telefone com [ex-diretor do FMI, Michel] Camdessus, não sei com quem mais, senti o ambiente e disse: "Bom, vou voltar". Quando voltei, no domingo, fiz uma reunião aqui nessa mesma mesa. Frio, naquele dia, eu só vi o Gustavo Franco. O Gustavo é uma pessoa excepcional. É muito dedicado, trabalhador, conhece a literatura, banca as decisões. Os outros estavam em pânico. Só o Gustavo e eu não estávamos. O [Pedro] Malan também não, porque raras vezes eu o vi alterado. Era preciso tomar decisões difíceis: banca ou não banca o real? Resolvemos bancar.

CRISE DA RÚSSIA - Durante a crise da Rússia, em agosto de 98, veio aqui o Stanley Fischer [ex-dirigente do FMI]. O Malan o trouxe para conversar comigo. E foi muito interessante porque a crise já estava posta. Ele perguntou: "Quando são as eleições?" "Em outubro", respondi. Ele disse: "Não sei se vai dar para essa crise não estourar antes das eleições".

DESVALORIZAÇÃO - Naquele mês de dezembro [de 98] já era visível, para mim, que não tinha dado certo a tentativa de sustentar o regime [cambial] nem com o apoio do FMI. Daí por diante, comecei a forçar. Tivemos várias reuniões, e o Chico Lopes começou a pensar em alternativas. O mercado percebeu que não se estava mudando o regime. Estavam mudando as pessoas, o comando, e não sentiu pulso para isso no novo comando. Por isso, em 29 de janeiro [de 99", quando houve aquela corrida aos bancos que eu tive que segurar, indo à televisão no dia seguinte, o Malan e o Pedro Parente falaram: olha aqui, tem de tirar o Chico. O Chico não é homem para isso.

LULA - Não é que seja melhor, é que eu tinha comando. Porque, para o mercado, o que é o novo? O Lula, que não tinha proposta para o Brasil. Ia ficar rodopiando.

CRISE E CAPITALISMO - O medo que eu tenho, é que estoure lá [nos países desenvolvidos]. Isso que nós estamos assistindo são prolongamentos, não vimos uma crise mundial. Estamos na escala Richter 3, e não 7. Sete é quando acontece lá, e aí não temos nada o que fazer. Aí volta a 1930, fecha-se a economia de novo, sei lá.
As pessoas, inconscientemente, odeiam o capitalismo, mas também não gostam do socialismo. Então, é complicado, porque não entendem que o capitalismo é assim, você tem de fazer outras coisas para que ele não seja mau assim como ele é, porque ele é intrinsecamente mau.


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