São Paulo, Quinta-feira, 25 de Março de 1999
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ENTREVISTA
Presidente diz que rejeitaria a medida, se aprovada pelo Congresso, e admite erro em sobrevalorização da moeda
FHC afirma que veta indexação salarial

VALDO CRUZ
Diretor-executivo da Sucursal de Brasília

ELIANE CANTANHÊDE
Diretora da Sucursal de Brasília

O presidente Fernando Henrique Cardoso disse à Folha que não vai admitir a volta da indexação da economia. "No limite, eu veto. Eu não vou deixar", afirmou, ao ser questionado sobre a hipótese de o Congresso aprovar a reindexação dos salários.
FHC afirmou, porém, não acreditar que o Legislativo opte por esse caminho. Acredita ainda que não há demanda dos trabalhadores pela volta da indexação: "Eles sabem que não há política que proteja o salário da inflação".
Durante entrevista de uma hora e dez minutos, FHC reconheceu que o FMI estava estar certo ao defender uma desvalorização cambial em 98, quando foi fechado o primeiro acordo com o organismo.
"Talvez naquele momento eles tivessem mais razão do que nós", admitiu o presidente. À pergunta se achava que o Fundo tinha razão, FHC respondeu secamente: "Acho".
Ao ser lembrado de que o debate sobre a reindexação dos salários ganhou força depois que o acordo com o FMI considerou uma inflação de 16,8% neste ano, FHC afirmou: "Não concordo com esse cenário, porque vai ser menos". Como também disse não concordar com a queda de 3,5% a 4% do PIB. Como palpite, diz que será menor.
O presidente não gostou de uma pergunta sobre sua fama de "empurrar decisões com a barriga" e demonstrou otimismo na entrevista: "Estamos saindo do buraco". Descartou totalmente a possibilidade de privatizar a Petrobrás. A seguir, trechos da entrevista.

Folha - O ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco disse que o sr. abandonou a defesa do real, que saiu do governo porque o sr. patrocinou a desvalorização cambial e isso foi um erro. Por que o sr. nunca respondeu?
Fernando Henrique Cardoso
- Eu não vou responder ao Gustavo Franco, até porque ele não falou assim tão diretamente. Ele se referiu ao governo... Em segundo lugar, eu sempre apoiei a política do Banco Central.
Folha - E a polêmica sobre o adiamento na mudança do câmbio, as críticas de que, por causa da eleição, o governo não fez a desvalorização em 98?
FHC -
Comecei as conversas com o Fundo no fim de setembro, início de outubro, e foram terminadas já no começo de novembro, quando eu já tinha sido reeleito. Não tem nada a ver com a questão eleitoral, como o (Michel) Camdessus (diretor-gerente do FMI) mencionou.
Então, por que não se mudou a política? Pelas mesmas razões anteriores. A área econômica considerava que teríamos condições, havendo apoio grande dos países mais ricos, porque todo mundo deu dinheiro, mais o FMI, nós teríamos condições de restabelecer a confiança.
Folha - Tudo isso não foi uma racionalização do problema, para que o sr. exercitasse sua decantada capacidade de empurrar decisões difíceis com a barriga? Não foi assim que a opinião pública entendeu?
FHC -
Isso tudo não passa de preconceito. É mentira. Puramente mentira.
Folha - Mas não é uma característica de seu governo tomar medidas necessárias na hora da crise e depois relaxar quando as coisas parecem melhorar?
FHC -
Isso pode até ser possível, mas não que seja eu. O que vocês disseram é que eu empurro com a barriga. Não. Eu não. Eu apoiei as decisões.
Folha - Os ministros é que não estão seguindo exatamente a cartilha?
FHC -
Não, não. Eles estão seguindo sim. Naquela ocasião, qual era a idéia? Era a idéia de que, com os recursos abundantes, nós teríamos condições de evitar o que viria depois. Ninguém queria o que aconteceu em janeiro.
Não é verdade que eu tenha empurrado com a barriga, não senhora. Isso é a maneira mais fácil de explicar as coisas sem fazer trabalho de pesquisa, sem saber o que houve mesmo.
O que houve mesmo é que nós estávamos convencidos, e eu me incluo nisso, de que com os apoios seria possível retomar o rumo, como tinha sido retomado depois da crise da Ásia. Eu mesmo me empenhei na obtenção desses apoios.
Mas não houve interferência minha, dizendo: empurra com a barriga, não toma decisão, faça isso, não faça aquilo.
Folha - Mas a própria equipe econômica admite que não fez o ajuste fiscal como deveria ter feito.
FHC -
Vamos voltar a isso depois...
Folha - E o Gustavo Franco acrescentou que a desvalorização só foi feita, afinal, por pressão de "vozes influentes". Quem foram elas?
FHC -
"Vozes influentes" contra a política dele houve o tempo todo, desde o início. Por que só agora?
Folha - Nós devolvemos a pergunta: por que só agora as "vozes influentes" tiveram êxito?
FHC -
Porque depois do esforço feito as reservas continuaram a cair. Essa é a verdade. Eu não sou pessoa de ser levada, não acredito nessas teorias de expectativas a toda hora, nessa coisa de psicologia social para explicar a economia.
Quando as pessoas não têm noção efetiva do processo econômico inventam uma teoria psicológica: "O presidente empurrou com a barriga..." Tudo isso é besteira.
Folha - As "vozes influentes" do Gustavo Franco também foram uma teoria psicológica?
FHC -
Eu acho, porque sempre há vozes influentes, contra e a favor. Mas há fatos que são mais pesados do que as vozes. O fato determinante na mudança foi a continuidade da perda de reservas. Ou seja, o não restabelecimento da confiança.
Folha - O Brasil pagou um enorme preço com a política de juros altos, mas ela não segurou os investidores.
FHC -
Na verdade, a política que foi seguida depois do acordo com o FMI não foi exatamente a que o Fundo preconizava, porque o Fundo sempre quis taxas de juros muito altas.
Folha - E a desvalorização, eles defendiam uma desvalorização no ano passado. Mas acabou cedendo às pressões do próprio Gustavo Franco, que era contra.
FHC -
Cedeu porque cedeu, porque quis. Não é isso? Ele podia ter exigido, mas ele também se convenceu, como eu, de que era viável.
Ele não cedeu porque simplesmente não tem força, até porque ele tem força. Cedeu porque os argumentos eram plausíveis, na linha de que daria para sustentar.
Eles têm uma defesa: os pressupostos deles eram de que, para poder ser viável, as taxas de juros tinham de estar lá em cima. Só que a grita contra as taxas de juros altas era no Brasil inteiro. Fiesp, governadores, parlamentares e também a equipe econômica.
A equipe, ou pelo menos alguns deles, conheceu bem os efeitos dos juros altos em 97. Os efeitos sobre a economia real.
Por isso, começou a haver uma discussão no mundo sobre a validade dessa política do próprio Fundo. Os economistas estão divididos. É no mundo todo, e aqui eles também estão divididos.
O que prevaleceu foi uma diminuição das taxas de juros. Nós chegamos em dezembro com vinte e qualquer coisa, com as taxas descendo.
Só que, no dia seguinte à aprovação do acordo pela direção do Fundo, o Congresso rejeitou o ajuste (a contribuição dos inativos da Previdência).
Qual foi a leitura externa? Ah, o Brasil pegou o dinheiro, está baixando as taxas de juros e não vai fazer ajuste nenhum, porque o governo tinha de ganhar isso daí.
Folha - E aí acabou sendo obrigado a abandonar a defesa da moeda...
FHC -
Mas isso o Gustavo sabe... Não é abandono da moeda. No meu modo de entender, é outra coisa. Como continuou a haver perda de reservas, o FMI, o Tesouro americano e, por consequência, o sistema financeiro internacional, começaram a nos olhar com certa desconfiança: "Vocês não vão fazer é nada...'
Aí eu disse: "Não dá mais". Não dava mais para seguir naquela política, porque o pressuposto dela tinha desaparecido, que era a abundância de financiamento.
Foi isso que me fez mudar, não essa história de "vozes influentes", até porque elas sempre existiram. Enquanto achei que havia coerência na política e condições materiais de executá-la, eu apoiei. Eu não abandonei a moeda, a moeda é que perdeu força.
Eu decidi isso com o (Pedro) Malan. Foi uma questão de cálculo. Na avaliação do Gustavo, seria possível recompor o fluxo de capitais. Eu achei que não seria. Essa foi a discordância.
Folha -Qual a opinião do sr. sobre as críticas do presidente do Congresso, senador Antonio Carlos Magalhães, ao acordo com o FMI?
FHC -
Olha, se eu estivesse no Congresso diria isso também. Ninguém vai ao FMI porque gosta. Vai porque é necessário.
Folha -Houve uma combinação entre o sr. e o senador ACM antes das críticas dele ao FMI?
FHC -
Não, não houve. Apenas, e é verdade, que ao dizer isso ele me dá mais margem para negociar lá fora: "Cuidado, não é tão simples assim".
Folha -Então, a crítica dele ajuda o sr.?
FHC -
Não atrapalha...
Folha -E, de quebra, tira uma bandeira do PT?
FHC -
Eu não posso dizer isso, porque afinal sou presidente da República e estou negociando com o FMI.
Mas há entrevistas minhas lá atrás, muito antes de ser presidente, dizendo: "Vocês estão com preconceito contra o FMI, gente. O FMI não é um bicho de sete cabeças, é um instrumento do mundo contemporâneo, da economia capitalista". Eu fui um dos primeiros de oposição a dizer isso.
E o que o Antonio Carlos disse não foi uma crítica ao FMI, foi à ingerência interna. Eu também acho que não tem que ter. A decisão de corta aqui ou corta ali é nossa, não é do FMI. O programa é nosso, não é do FMI.
O que o FMI quis ver para dar a certidão? Quis ver se o programa se sustenta. E nós temos que ter um programa que se sustente.
Folha -E quando há divergências entre o Brasil e o FMI?
FHC -
Nada disso quer dizer que qualquer idéia do FMI tenha que ser aceita por nós. Tanto não é que no primeiro acordo, no ano passado, prevaleceu o nosso ponto de vista, não o deles. Infelizmente, talvez naquele momento eles tivessem mais razão do que nós.
Folha -O sr. admite então que eles tinham razão ao defender a desvalorização?
FHC -
Acho.
Folha -O sr. também admitiu que Fiesp, governadores e parlamentares gritavam contra a política de câmbio sobrevalorizado e juros altos. O sr. não acha que eles têm legitimidade para influenciar o governo? Que também devem ser ouvidos?
FHC -
Mas eles têm que me convencer dos argumentos.
Folha -E o argumento de que os juros estão acabando com a indústria nacional e, consequentemente, com os empregos? Não vale?
FHC -
Isso não vale, porque a discussão real é outra. A questão é saber como você prejudica menos. Se eu achasse que não haveria prejuízo com a flutuação, com o risco de inflação, com recessão... Era ilusão imaginar que você mudaria aquela política sem um período de recessão. Era muito fácil desvalorizar o câmbio? Isso era ingênuo.
FHC - Os ministros José Serra (Saúde), Paulo Renato (Educação) e Bresser Pereira (à época da Administração) defendiam isso. Também eram ingênuos?
FHC - Muita gente falava isso. Muitos sabiam das consequências, outros, não. Quantos industriais achavam que bastava desvalorizar o câmbio para baixar os juros? E não é assim.
Folha -O sr. disse que "estamos saindo do buraco", mas a primeira página da Folha dá hoje (ontem) uma taxa de desemprego de 18,7% na Grande São Paulo, segundo o Dieese.
FHC -
Não joguem com esses dados. A Folha faz umas manchetes que assustam. Talvez vendam jornal, mas...
Vocês sabem que 18,7% é a partir de uma técnica que aplicada na França, na Alemanha, na Argentina, vai dar uns 40% lá, gente. Vamos ser sérios. Vamos jogar com dados comparados.
Folha -Mas os dados do IBGE também estão subindo.
FHC -
Estão subindo, não há dúvida, mas a pergunta é outra. Primeiro, já estava subindo desde o ano passado. O desemprego é consequência da taxa de crescimento, que diminui. E diminui porque você não tem financiamento e, portanto, a taxa de juros é muito elevada. Então, você tem que atacar essas questões, que é o que estamos fazendo. Só que não se combate desemprego de um dia para outro.
Folha - A desvalorização acabou sendo feita no pior momento, as reservas estavam caindo.
FHC -
Não, não, as reservas estavam altíssimas.
Folha - Mas metade do que eram.
FHC -
Mas a outra metade era flutuante. Nós fizemos a mudança ainda com reservas ainda muito altas, o que vai permitir a mudança que vai haver na economia brasileira, positiva.
O governo não fez a flutuação. Aumentou a banda, e não teve força para segurar. Continuo achando que se pudesse segurar, seria melhor. Haveria menos desemprego.
Agora, eu tenho de jogar todas as minhas fichas, para que os lados benéficos da mudança aconteçam o mais rápido possível. Estão acontecendo. Primeiro, a inflação. No começo parecia que nós entraríamos num descalabro inflacionário, mas isso não aconteceu, pelo menos até agora. E o governo fará tudo para que não aconteça. Eu não vou deixar indexar a economia.
Folha - Como o sr. vai fazer isso?
FHC -
Ora, como você indexa a economia?
Folha - Por lei.
FHC -
Por lei. No limite, eu veto. Eu não vou deixar.
Folha - O sr. não acha que o Congresso, diante da alta da inflação, pode aprovar uma lei determinando a volta da indexação dos salários?
FHC -
Eu não acredito que o Congresso faça. Mas se vier a fazê-lo, eu veto.
Folha - E o Judiciário, ele não pode começar a dar reajustes salariais?
FHC -
Não há demanda, por parte dos trabalhadores, por indexação. Por quê? Porque os trabalhadores sabem, e os sindicatos também sabem, que eles perderam muito com a inflação, que não há política que proteja salário da inflação. O Brasil aprendeu isso.
Folha - O sr. diz que veta a volta da indexação. Mas o sr. não acha justa alguma reposição de perdas salariais?
FHC -
Olha aqui, essa idéia de perda é do passado também. Começa por aí para indexar. Primeiro precisa tem que ver de quanto foi a inflação até agora.
Folha -De 2%, 3%?
FHC -
Então vamos parar de falar dessa coisa. Porque, em 97, foi 10%, e ninguém falava de indexação, de perdas. Olhava para a frente.
Folha - Mas quem disparou essa discussão não foi o governo, quando colocou no cenário com o FMI que a inflação deste ano ficaria em 16,8%?
FHC -
Sim, eu não concordo com esse cenário, porque vai ser menos.
Folha - Então porque a equipe econômica colocou isso?
FHC -
Eu vou explicar. Porque não se trata de uma meta. Isso é um cenário. Se for menos, é mais fácil. Mesmo que a inflação chegue a 16%, 17%, mesmo assim a economia se mantém de pé.
Folha - E as perdas?
FHC -
Na negociação coletiva, eles (trabalhadores e empresários) vão discutir isso.
Folha - E o reajuste do salário mínimo? É possível R$ 140?
FHC -
Isso eu não sei, eu vi na Folha. Que eu saiba ainda não é um órgão técnico do governo.
Folha - No acordo com o FMI está previsto algum reajuste?
FHC -
Está, algum reajuste.
Folha -Na última entrevista que o sr. deu para o jornal, o sr. disse que não haveria cortes nos gastos sociais. Dois dias depois, o corte foi manchete nos jornais.
FHC -
Só que não foi verdadeiro. A cesta básica tinha um orçamento de R$ 90 milhões, passou para R$ 47 milhões, 50% de corte. Só que a cesta básica não sai apenas do Orçamento. Quem paga é a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento).
E os recursos da cesta básica não são esses, não. São de R$ 390 milhões, e vai continuar sendo. Para vocês terem idéia do que é a cesta básica, a ONU tem um programa de cesta básica no mundo, ela gasta US$ 540 milhões. Ou seja, nosso programa é enorme.
É um problema complicado, porque não é bom ter cesta básica. Inventou-se que era bom ter cesta básica. É bom ter emprego, a pessoa ter salário, ter renda.
Folha - Mas num país como o Brasil, com milhões de miseráveis e desemprego crescente?
FHC -
Enquanto não tem (emprego, salário), vai ter cesta básica. Então não é verdadeira a informação.
Folha - E sobre o tamanho da recessão neste ano?
FHC -
Eu não acredito que a queda do PIB vá ser no nível que estão dizendo, eu não acredito.
Folha - Estão dizendo, não. O governo está dizendo que deve ficar entre 3,5% a 4% do PIB.
FHC -
Sim. Mas na verdade ninguém sabe. Eu sempre me recusei a fazer previsões, isso é palpite, eu sempre me recusei.
Folha -Mas o sr. disse, uma vez, em entrevista à Folha, que se o crescimento do PIB for de 1%, é melhor dizer que vai ser de 2%.
FHC -
Bom, tudo bem. Eu acho que a gente sempre tem de ter um viés otimista.
Folha - E o que o sr. acha da idéia do senador Antonio Carlos Magalhães de criar uma CPI do Judiciário?
FHC -
Não sei, precisa ver que fato ele vai apresentar. Eu não quero me intrometer nessa coisa, porque questão de Poderes quanto menos eu me intrometo, melhor.
Folha - Mas o sr. não acha que a única instituição brasileira que escapou de abertura, de discussão, de reforma, não foi o Judiciário?
FHC -
Reforma é outra coisa, eu acho que ela precisa ser feita. Eu li outro dia com muita atenção duas entrevistas do Celso de Melo e também do Carlos Veloso (ministros do Supremo Tribunal Federal).
Folha - O sr. anda lendo bem a Folha..
FHC -
Eu não leio na Folha as pessoas que todo dia escrevem para me atacar. Por que eu vou ler? Há anos que eu não leio. E a Folha tem pessoas pagas para me atacar diariamente.
Folha - Mas a Folha não paga ninguém para atacar determinadas pessoas.
FHC -
Não paga? Então ela dá o calote (rindo). Todo dia eles atacam, então não leio, é perda de tempo, sei o que eles vão dizer.


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