São Paulo, domingo, 25 de setembro de 2005

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NO PLANALTO

Justiça não é cega, mas às vezes perde os óculos

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

A Justiça Eleitoral não é cega. Mas sofre de esotropia. Ou estrabismo convergente. O eixo visual de um olho se desloca em direção ao do outro, provocando uma encrenca chamada diplopia, que é a visão dupla de um mesmo objeto. O TSE vê duas leis eleitorais.
Em abril de 2004, munido dos óculos, o tribunal foi implacável no julgamento de um caso. Cassou os mandatos do senador João Capiberibe e da mulher dele, a deputada Janete Capiberibe, do PSB do Amapá. Acolheu, entre outras provas, o depoimento de duas mulheres. Contaram ter recebido, cada uma, R$ 26 para votar no casal.
Os Capiberibe foram ao STF. Sobreviviam em Brasília pendurados numa liminar. Na quinta-feira, porém, o Supremo cassou a liminar e restabeleceu a sentença do TSE. Marido e mulher vão agora expiar as suas culpas no Amapá.
Em abril de 2005, um ano depois de podar os mandatos de João e Janete Capiberibe, o TSE mostrou-se bem mais flexível. Chamado a aplicar a mesma Lei Eleitoral, olhou-a com olhos estrábicos. Era como se houvesse perdido os óculos.
A encrenca chegou a Brasília nas páginas de uma representação do Ministério Público Eleitoral do Pará. Pede a cassação dos mandatos dos tucanos Simão Jatene e Valéria Franco, governador e vice-governadora paraenses. Aconteceu assim:
1) em 2001, Almir Gabriel (PSDB) governava o Pará. Decidiu preparar um sucessor. Escolheu Simão Jatene, seu secretário de Produção. Cuidou para que a imagem do auxiliar fosse vinculada a um pacote de obras governamentais que prenunciavam a chegada de um "Novo Pará";
2) em meados de 2002, nas pegadas da Copa do Mundo em que o Brasil sagrara-se pentacampeão, o Pará foi escolhido pela CBF para sediar o "Grupo A" da Copa dos Campeões. Entre os dias 3 e 31 de julho, desfilaram pelo estádio do Mangueirão, em Belém: Fluminense, Corinthians, Palmeiras, Cruzeiro, Náutico e Paysandu;
3) fora do estádio, o candidato Simão Jatene ecoava o seu criador: prometia uma continuidade que conduziria ao Éden do "Novo Pará". Dentro do Mangueirão, placas de publicidade davam concretude ao slogan de campanha. Gritavam para milhões de torcedores, em cores vibrantes, os nomes das obras do tucanato paraense: alça viária, pólo de soja, hospital de clínicas, planetário, novo aeroporto etc.;
4) a publicidade oficial estava em toda parte. Adornando o muro de arrimo das arquibancadas, enfeitando as laterais do campo. Impossível assistir aos jogos sem dar de cara com as placas;
5) algumas placas tinham o indisfarçável cheiro de palanque. "Governo que faz", recitava uma. "Novo Pará", repisava outra. Parecia esperteza eleitoral. Era, na verdade, grossa ilegalidade. A Lei Eleitoral proíbe a veiculação de publicidade governamental nos três meses que antecedem as eleições;
6) abertas as urnas, a chapa Simão Jatene/Valéria Franco foi às redes, mas roçou na trave. O tucanato venceu a eleição, em segundo turno, pela estreita margem de 85 mil votos. Muitos podem ter sido fisgados pela propaganda do Mangueirão. Somando-se a platéia que pagou para ver os jogos no estádio, chega-se a 172 mil torcedores. Estima-se que outros 148 mil paraenses acompanharam as partidas -e as placas- pela TV. Três canais transmitiram os jogos: Globo, Record e SporTV;
7) em 13 de novembro de 2002 (oito dias depois da eleição e um mês antes da diplomação dos vitoriosos), o Ministério Público moveu uma ação em que pedia à Justiça Eleitoral: a) imposição de multa a Almir Gabriel e Lucilene Farinha Silva, secretária-adjunta de Esportes e Lazer, responsáveis pela propaganda ilegal; b) cassação dos registros de candidatos de Jatene e de sua vice;
8) o TRE do Pará impôs multa mixuruca a Gabriel e Farinha Silva: R$ 5.320 para cada um. Mas entendeu que o benefício eleitoral a Jatene e Valéria não restou provado. Manteve-se a diplomação dos vitoriosos;
9) o Ministério Público recorreu ao TSE. Ali, os juízes deram bom dia ao inusitado. Em vez de decidir se os eleitos deveriam ou não ser cassados, embrenharam-se numa discussão sobre a presteza da ação dos procuradores da República. Argumentou-se que a propaganda ilegal deveria ter sido denunciada logo depois de ter sido descoberta, em julho de 2002, e não depois das eleições, em dezembro do mesmo ano. Decidiu-se, em votação apertada, fixar um prazo. Doravante, quem quiser denunciar infrações à Lei Eleitoral terá de fazê-lo em cinco dias, contados do conhecimento do fato;
10) voto vencido, o juiz Marco Aurélio, óculos de leitura acomodados sobre a narina, declarou-se "perplexo". Lembrou aos colegas que a lei não prevê prazos para a formalização da denúncia: "Mas a lei [eleitoral] está em vigor desde 1997 e, em 2005, vamos nela inserir um prazo?" Ponderou que TSE não é Congresso: "A dificuldade que tenho é a de atuar nesse vazio deixado pelo legislador e criar um prazo, como se legislador fosse (...)." E vaticinou acerca dos efeitos da temeridade: "A fixação de um prazo, principalmente um prazo exíguo, para a atuação do Ministério Público e do Judiciário, levará praticamente à impunidade."
11) o relator do processo, juiz Luiz Carlos Madeira, não se deu por achado. Alegou que a ausência de prazo abre brecha para a apresentação de ações "oportunistas" contra candidatos eleitos. Em decisão apertada (três votos contra quatro), o TSE mandou ao arquivo, sem analisá-lo, o pedido de cassação dos mandatos da dupla Jatene/ Valéria;
12) o Ministério Público protocolou há 20 dias um novo recurso em que pede ao TSE que reconsidere a decisão. Espera-se que o tribunal reencontre os seus óculos. A hora cobra mais foco dos juízes. Mergulhado em escândalos, o Congresso costura alterações na legislação eleitoral. O próprio TSE constituiu um grupo para sugerir aperfeiçoamentos. Avanços são sempre bem-vindos. Mas o bom uso das leis já existentes talvez demonstre que não precisamos tanto assim de novas leis.


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