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NO PLANALTO
Justiça não é cega, mas às vezes perde os óculos
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
A Justiça Eleitoral não é
cega. Mas sofre de esotropia. Ou estrabismo convergente.
O eixo visual de um olho se desloca em direção ao do outro, provocando uma encrenca chamada
diplopia, que é a visão dupla de
um mesmo objeto. O TSE vê duas
leis eleitorais.
Em abril de 2004, munido dos
óculos, o tribunal foi implacável
no julgamento de um caso. Cassou os mandatos do senador João
Capiberibe e da mulher dele, a deputada Janete Capiberibe, do PSB
do Amapá. Acolheu, entre outras
provas, o depoimento de duas
mulheres. Contaram ter recebido,
cada uma, R$ 26 para votar no
casal.
Os Capiberibe foram ao STF.
Sobreviviam em Brasília pendurados numa liminar. Na quinta-feira, porém, o Supremo cassou a
liminar e restabeleceu a sentença
do TSE. Marido e mulher vão
agora expiar as suas culpas no
Amapá.
Em abril de 2005, um ano depois de podar os mandatos de
João e Janete Capiberibe, o TSE
mostrou-se bem mais flexível.
Chamado a aplicar a mesma Lei
Eleitoral, olhou-a com olhos estrábicos. Era como se houvesse
perdido os óculos.
A encrenca chegou a Brasília
nas páginas de uma representação do Ministério Público Eleitoral do Pará. Pede a cassação dos
mandatos dos tucanos Simão Jatene e Valéria Franco, governador e vice-governadora paraenses. Aconteceu assim:
1) em 2001, Almir Gabriel
(PSDB) governava o Pará. Decidiu preparar um sucessor. Escolheu Simão Jatene, seu secretário
de Produção. Cuidou para que a
imagem do auxiliar fosse vinculada a um pacote de obras governamentais que prenunciavam a
chegada de um "Novo Pará";
2) em meados de 2002, nas pegadas da Copa do Mundo em que
o Brasil sagrara-se pentacampeão, o Pará foi escolhido pela
CBF para sediar o "Grupo A" da
Copa dos Campeões. Entre os dias
3 e 31 de julho, desfilaram pelo estádio do Mangueirão, em Belém:
Fluminense, Corinthians, Palmeiras, Cruzeiro, Náutico e Paysandu;
3) fora do estádio, o candidato
Simão Jatene ecoava o seu criador: prometia uma continuidade
que conduziria ao Éden do "Novo
Pará". Dentro do Mangueirão,
placas de publicidade davam
concretude ao slogan de campanha. Gritavam para milhões de
torcedores, em cores vibrantes, os
nomes das obras do tucanato paraense: alça viária, pólo de soja,
hospital de clínicas, planetário,
novo aeroporto etc.;
4) a publicidade oficial estava
em toda parte. Adornando o muro de arrimo das arquibancadas,
enfeitando as laterais do campo.
Impossível assistir aos jogos sem
dar de cara com as placas;
5) algumas placas tinham o indisfarçável cheiro de palanque.
"Governo que faz", recitava uma.
"Novo Pará", repisava outra. Parecia esperteza eleitoral. Era, na
verdade, grossa ilegalidade. A Lei
Eleitoral proíbe a veiculação de
publicidade governamental nos
três meses que antecedem as eleições;
6) abertas as urnas, a chapa Simão Jatene/Valéria Franco foi às
redes, mas roçou na trave. O tucanato venceu a eleição, em segundo turno, pela estreita margem de
85 mil votos. Muitos podem ter sido fisgados pela propaganda do
Mangueirão. Somando-se a platéia que pagou para ver os jogos
no estádio, chega-se a 172 mil torcedores. Estima-se que outros 148
mil paraenses acompanharam as
partidas -e as placas- pela TV.
Três canais transmitiram os jogos: Globo, Record e SporTV;
7) em 13 de novembro de 2002
(oito dias depois da eleição e um
mês antes da diplomação dos vitoriosos), o Ministério Público
moveu uma ação em que pedia à
Justiça Eleitoral: a) imposição de
multa a Almir Gabriel e Lucilene
Farinha Silva, secretária-adjunta
de Esportes e Lazer, responsáveis
pela propaganda ilegal; b) cassação dos registros de candidatos de
Jatene e de sua vice;
8) o TRE do Pará impôs multa
mixuruca a Gabriel e Farinha Silva: R$ 5.320 para cada um. Mas
entendeu que o benefício eleitoral
a Jatene e Valéria não restou provado. Manteve-se a diplomação
dos vitoriosos;
9) o Ministério Público recorreu
ao TSE. Ali, os juízes deram bom
dia ao inusitado. Em vez de decidir se os eleitos deveriam ou não
ser cassados, embrenharam-se
numa discussão sobre a presteza
da ação dos procuradores da República. Argumentou-se que a
propaganda ilegal deveria ter sido denunciada logo depois de ter
sido descoberta, em julho de 2002,
e não depois das eleições, em dezembro do mesmo ano. Decidiu-se, em votação apertada, fixar um
prazo. Doravante, quem quiser
denunciar infrações à Lei Eleitoral terá de fazê-lo em cinco dias,
contados do conhecimento do fato;
10) voto vencido, o juiz Marco
Aurélio, óculos de leitura acomodados sobre a narina, declarou-se
"perplexo". Lembrou aos colegas
que a lei não prevê prazos para a
formalização da denúncia: "Mas
a lei [eleitoral] está em vigor desde 1997 e, em 2005, vamos nela inserir um prazo?" Ponderou que
TSE não é Congresso: "A dificuldade que tenho é a de atuar nesse
vazio deixado pelo legislador e
criar um prazo, como se legislador fosse (...)." E vaticinou acerca
dos efeitos da temeridade: "A fixação de um prazo, principalmente um prazo exíguo, para a
atuação do Ministério Público e
do Judiciário, levará praticamente à impunidade."
11) o relator do processo, juiz
Luiz Carlos Madeira, não se deu
por achado. Alegou que a ausência de prazo abre brecha para a
apresentação de ações "oportunistas" contra candidatos eleitos.
Em decisão apertada (três votos
contra quatro), o TSE mandou ao
arquivo, sem analisá-lo, o pedido
de cassação dos mandatos da dupla Jatene/ Valéria;
12) o Ministério Público protocolou há 20 dias um novo recurso
em que pede ao TSE que reconsidere a decisão. Espera-se que o
tribunal reencontre os seus óculos. A hora cobra mais foco dos
juízes. Mergulhado em escândalos, o Congresso costura alterações na legislação eleitoral. O próprio TSE constituiu um grupo para sugerir aperfeiçoamentos.
Avanços são sempre bem-vindos.
Mas o bom uso das leis já existentes talvez demonstre que não precisamos tanto assim de novas leis.
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