São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

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Entrevista da 2ª

D. RAYMUNDO DAMASCENO ASSIS

"O Brasil e a América Latina vão reevangelizar a Europa"

Arcebispo de Aparecida e anfitrião do papa durante visita ao país, d. Raymundo diz que caminho mudou e que futuro da igreja passa pelos missionários dos países pobres

LEANDRO BEGUOCI
ENVIADO ESPECIAL A APARECIDA (SP)

O arcebispo de Aparecida (SP), D. Raymundo Damasceno, 69, receberá Bento 16 em maio de 2007, na visita do papa ao Brasil. Ele afirma que o sumo pontífice verá, durante sua estada no país, uma igreja disposta e capaz de enviar missionários para suprir a falta de vocações na Europa e atribui esse fato, entre outros, à forma como as dioceses brasileiras são governadas.

D. Raymundo é tido, dentro da igreja do Brasil, como um moderado. Ao mesmo tempo em que se preocupa com problemas sociais, é fiel ao Vaticano. Embora destaque que a igreja do Brasil e da América Latina toma decisões conjuntas e se reúne para debater problemas comuns, diferente da Europa, o arcebispo (que já ensinou filosofia na Universidade de Brasília) diz que a igreja não é uma democracia. Hoje, o bispo está todo voltado para a organização da 5ª Conferência do Episcopado Latino-americano e do Caribe, que será aberta pelo papa em 13 de maio de 2007 com a participação de bispos de 22 países. Ele deposita suas esperanças de que a conferência se baseará nos preceitos do Concílio Vaticano 2º (1962-1965), que reformou a igreja no século 20, nas conferências anteriores no Rio de Janeiro (1955), Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992) para formular soluções referentes aos problemas que afligem os católicos neste começo de século, como a perda de fiéis para as igrejas neopentecostais.  

FOLHA - As conferências não têm data certa para ocorrer. Por que organizá-la agora?
D. RAYMUNDO DAMASCENO ASSIS
- Na última conferência, não se falava em globalização. Falava-se da queda do comunismo. Hoje, há também o fenômeno dos movimentos religiosos. O surgimento forte das igrejas pentecostais ou neopentecostais. Você tem também a urbanização mais intensa, a brecha entre ricos e pobres continua e já se fala até de uma concentração ainda maior de riqueza.

FOLHA - A conferência é importante porque o papa vem ao Brasil ou Bento 16 vai a Aparecia porque a conferência é importante?
D. RAYMUNDO
- O papa vem por causa da conferência. As conferências anteriores, com exceção da primeira, que ocorreu no Rio de Janeiro em 1955, foram inauguradas pelos papas. Essa modalidade de assembléia é própria da América Latina. Não existem conferências gerais do episcopado europeu. Aqui, os delegados para a conferência são eleitos.

FOLHA - A igreja se democratizou?
D. RAYMUNDO
- Não é democratização. É uma expressão colegial da igreja. É diferente. Nós, bispos, formamos um colégio que tem como cabeça o papa. Os bispos estão em comunhão entre si e com o papa. A partir do Concílio Vaticano 2º, a igreja adotou certos mecanismos de governo colegial. Nós não falamos democrático. Preservamos a autoridade do papa e dos bispos. Não se pode falar em democracia na igreja. Hoje, há mecanismos de governo da igreja que são mais colegiais. Você tem o Sínodo dos Bispos, que é uma forma de o papa governar a igreja se assessorando com os bispos, que se reúnem de três em três anos. As conferências episcopais também são organismos onde os bispos, em conjunto, debatem e tomam decisões em conjunto. O mundo se tornou mais complexo. Um bispo, hoje, não tem como lidar com problemas que ultrapassam os limites da sua diocese. Ele precisa se unir a outros para encontrar respostas a problemas que a igreja tem de enfrentar naquele país.

FOLHA - Então como se define essa mudança na igreja?
D. RAYMUNDO
- A igreja é uma comunhão, é mistério, não é uma entidade que você analisa meramente do ponto de vista sociológico. As pessoas interpretam a igreja na base de poder, não sabe se ganha a esquerda ou a direita, vai fazendo a análise. Isso é uma análise muito redutiva. A igreja é obra de Deus, para nós que temos fé. Ela é comunhão, não é democracia. É uma unidade na diversidade, mas onde se respeitam as funções e as responsabilidades. É a imagem do corpo expressa por São Paulo: somos um corpo com diversos membros, diversas funções. Cada órgão trabalha complementando o outro, em harmonia com o outro para o bem de todo o corpo.

FOLHA - É correto dizer que a igreja no Brasil é menos "romana"?
D. RAYMUNDO
- A igreja é católica, apostólica e romana enquanto tem seu centro em Roma. O papa está em Roma. Nós não podemos entender a igreja sem o papa. O próprio Cristo, ao escolher os apóstolos, os escolheu e os constituiu em forma de um colégio. E deu a esse colégio uma cabeça, São Pedro. Não é romana no sentido de que todo mundo tem que falar italiano ou usar os costumes da Itália. Na conferência aqui em Aparecida, por exemplo. O papa vai dar orientações. Vai falar, colocar como pastor da igreja suas preocupações que vão certamente iluminar os trabalhos da conferência. Mas os bispos têm liberdade para discutir, tomar decisões.

FOLHA - O sr. acha que as adaptações ajudam a explicar a sobrevivência da igreja ao longo do anos?
D. RAYMUNDO
- A durabilidade da igreja é por ser obra de Deus. O projeto de Deus para salvar a humanidade encontrou seu ponto maior no mistério da encarnação, em Jesus Cristo, de tal maneira que a igreja é continuação da missão de Cristo na Terra. Por isso ela dura. Contudo, a igreja é humana e divina, tem suas limitações, não é extraterrestre, está encarnada no mundo, na sociedade. E por isso está sujeita a críticas. Você não pode criticar o que não existe ou não tem história.

FOLHA - Como dialogar com outras religiões quando se acredita que foi escolhida por Deus?
D. RAYMUNDO
- Um caminho conhecido para a salvação é o da Igreja Católica. Deus tem outros caminhos que nós não conhecemos. Por isso que você tem que respeitar, por isso você não pode dizer que esse está no inferno e esse outro não. Uma pessoa numa igreja determinada, ou até mesmo sem religião, mas que age honestamente, essa pessoa pode ser salva por caminhos que nós não conhecemos. Mas nós, católicos, temos que trabalhar a nossa identidade. Não há diálogo possível sem uma identidade clara. Senão, não teremos nada a oferecer no diálogo com as outras religiões.

FOLHA - Essa é a primeira viagem de Bento 16 a um país que não pertence ao hemisfério Norte. Ele vai ter alguma surpresa por aqui?
D. RAYMUNDO
- O papa vai encontrar um povo profundamente religioso, diferente da Europa, dos Estados Unidos, países marcados pelo secularismo, pelo bem-estar, pelo materialismo. Aqui não. Basta andar em Aparecida. Domingo passado (dia 17), vieram 200 mil romeiros, sem motivo especial.

FOLHA - O Brasil pode contribuir para mudar esse cenário na Europa?
D. RAYMUNDO
- Acho que nós temos que mostrar essa alegria de ser igreja. Depois, temos que valorizar uma liturgia cada vez mais participativa, mais dinâmica, mais alegre. Respeitando, evidentemente, as normas da liturgia. Mas isso não impede que a liturgia seja cantada pelo povo. Aqui, a igreja, do ponto de vista dos seus dirigentes, é muito mais próxima do povo.

FOLHA - O futuro da igreja está no que se chamava de Terceiro Mundo?
D. RAYMUNDO
- Sem dúvida nenhuma. Temos uma responsabilidade e um dever de gratidão com a Europa. Temos de retribuir os missionários que eles nos mandaram no século 16. Nós, agora, devemos ser uma igreja missionária, dinâmica, que é capaz de sair da sua terra para dinamizar novamente a igreja, sobretudo na Europa. O caminho se inverteu. O Brasil, a América Latina vão, digamos, reevangelizar a Europa. Estive na Europa e vi a dificuldade. Dioceses de lá me pedem padres e até seminaristas. Passou aqui por Aparecida um bispo francês, gostou muito dessa minha colocação e disse que ia me pedir padres e seminaristas. Da Itália eu já tenho pedidos. Eles não têm vocações suficientes para substituir os padres idosos e doentes. O Brasil vai levar a nova evangelização para a Europa.

FOLHA - O sr. acha que a ordenação de mulheres entrará em pauta nessa nova fase da igreja?
D. RAYMUNDO
- Não, porque a igreja é bem clara em relação a isso. Não é permitido. Mas não é necessário ser padre para participar da igreja. Você pode participar de diversas maneiras. As mulheres estão participando de outras instâncias de decisão, na Cúria romana há muitas mulheres trabalhando. Hoje há mulheres fazendo teologia, dando contribuições teológicas. Há muitas maneiras de participar da igreja. Se o sacerdócio fosse a única maneira, então seria discriminação.

FOLHA - O fim do celibato também não é cogitado?
D. RAYMUNDO
- O celibato é uma questão disciplinar, mas não é só disciplinar. Tem um valor evangélico, próprio, teológico, que nós temos que ver.
Há um valor no sentido de que o celibato é uma forma de se colocar de uma maneira mais disponível, mais radical, total, ao serviço ao reino de Deus. Ao mesmo tempo, o celibato é um sinal do mundo que nós aguardamos. Porque, como diz o Evangelho, não haverá casados no céu, não há necessidade de casamento porque a espécie humana estará completa. Não haverá necessidade de multiplicar a espécie humana no céu. Seremos como anjos.


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