São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 2001

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ENTREVISTA DA 2ª

Leilah Landim, do Iser, vê também necessidade de politização do voluntariado

Para antropóloga, religião motiva voluntário

ANTÔNIO GOIS
DA REPORTAGEM LOCAL

A antropóloga Leilah Landim, pesquisadora do Iser (Instituto de Estudos da Religião) e professora da Escola de Serviço Social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), afirma que não se pode dizer que o Brasil não tem tradição em trabalho voluntário.
Ao pesquisar o tema, ela concluiu que doar tempo de forma gratuita é prática comum no país, mas com uma diferença em relação ao trabalho feito nos EUA: aqui, a principal motivação é religiosa e reforçada por laços pessoais.
Segundo sua pesquisa, feita com a socióloga Maria Celi Scalon, do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), 22% dos brasileiros dedicam parte do seu tempo para ações de ajuda.
A pesquisa, encomendada ao Ibope em 1998, mostra que 50% dos brasileiros adultos doaram naquele ano alguma quantia para instituições de caridade. Se forem consideradas as doações feitas a pessoas físicas, o percentual de habitantes que fizeram alguma doação sobe para 80%, ou seja, quatro em cada cinco brasileiros.
Exemplos desse tipo de voluntariado no Brasil são mulheres que tomam conta dos filhos das vizinhas que frequentam a mesma igreja ou que visitam doentes que fazem parte da sua comunidade. Para ela, esse é um perfil diferente do veiculado nas campanhas. Inspirado no modelo norte-americano, o voluntário que começa a ganhar espaço na sociedade é o "engajado", cuja motivação não é religiosa, mas social, e que não tem laço afetivo com o beneficiário.
Ela se preocupa, no entanto, com a tendência de substituir um modelo de voluntariado por outro, e de a campanha não atingir a dimensão pretendida.

Folha - É errado dizer que o Brasil não tem tradição de trabalho voluntário?
Leilah Landim
- Sim. No Brasil, foi recentemente que o voluntariado foi colocado como tema na agenda para a opinião pública. O que nos últimos anos tem-se procurado disseminar aqui pela mídia, por instituições privadas de ação social e por entidades de origem empresarial nacionais e estrangeiras, é o conceito de voluntariado que existe, principalmente, na sociedade norte-americana.

Folha - Que modelo é esse?
Leilah
- É um modelo que fala de civismo, de uma sociedade que vê o voluntariado como um compromisso cívico, mas que é baseado em iniciativas individuais que valorizam talento, qualidade, resultado e eficácia das ações.

Folha - Qual a diferença do perfil do voluntário que existe no Brasil?
Leilah
- No Brasil, existe uma rede informal de trabalho voluntário que, muitas vezes, não aparece e não se enquadra no conceito que está sendo disseminado atualmente pela maioria das campanhas. A ação de solidariedade mais comum no Brasil é praticada por pessoas com algum vínculo pessoal com os beneficiados.

Folha - Por exemplo?
Leilah
- Há exemplos de famílias que criam, informalmente, uma creche ou uma pequena entidade para ficar com as crianças de sua própria comunidade. As pessoas criam formas de suprir suas necessidades materiais numa sociedade em que o Estado está mais débil. No entanto, isso é feito normalmente, sem se pensar numa relação de direitos e deveres, de que é preciso pressionar o poder público para fazer cumprir o direito à creche, por exemplo.

Folha - O que move essas pessoas?
Leilah
- Geralmente, o que as move não é a consciência de que estão fazendo um dever de cidadãos. É mais uma relação de valores individuais, de ajuda a quem precisa, de generosidade. Muitas vezes, o motivo da doação é também por obrigação religiosa.

Folha - E nos EUA?
Leilah
- Nos Estados Unidos predominam os valores individuais, a idéia liberal de que o indivíduo vai ter sucesso com seu esforço e seu mérito. A formação daquele país foi feita por meio de uma colonização de homens livres, onde predomina a idéia do pioneiro, da pessoa que tem iniciativa. Há também uma tradição de separação da igreja e do Estado. Além disso, o protestantismo americano promoveu a conquista de direitos cívicos, com participação ativa na sociedade.

Folha - Hoje o que a senhora percebe no discurso oficial do estímulo ao voluntariado?
Leilah
- O conceito de voluntariado que hoje se propaga não é mais aquele assistencialista. As campanhas querem incentivar a participação cívica, a qualidade, a competência e a busca de resultados, assim como as empresas avaliam o resultado de suas ações.

Folha - Isso é positivo, ou não?
Leilah
- Estamos diante de uma questão importante: a ligação desses valores novos associados à cidadania e dos valores tradicionais da sociedade brasileira. Essas duas lógicas podem se encontrar ou entrar em choque. A eficácia dessa campanha depende, em grande parte, da comunicação entre esses dois mundos. Temos uma cultura tradicional com valores extremamente positivos. O atual discurso tem uma preocupação com "a implantação de uma cultura moderna de voluntariado preocupado com a eficiência", ou seja, "a nova visão do trabalho comunitário não tem nada a ver com caridade e esmola".

Folha - Como fazer para congregar esses dois perfis?
Leilah
- Quem inaugurou de forma bem explicitada o encontro desses dois perfis foi a Ação da Cidadania, cuja maior figura foi o Betinho (o sociólogo Herbert de Souza, que morreu em 1997). Ele conseguiu apelar para os setores tradicionais alertando sempre para a necessidade de que temos que atuar com emergência ao mesmo tempo em que cobramos do Estado. Isso mostra que os dois valores não são contraditórios. Houve, nessa época, uma espécie de contaminação entre esses dois campos: o que sempre trabalhou com caridade e assistencialismo e o que procurava incluir a questão da cidadania e dos direitos no debate na sociedade.
Na nossa pesquisa, percebemos que as pessoas concordavam com a tese de que "é importante ajudar os outros" principalmente por causa de suas crenças religiosas. Elas percebiam, no entanto, que se o Estado cumprisse seu dever não era preciso fazer o trabalho.

Folha - A cidadania está pouco presente no incentivo ao voluntariado?
Leilah
- É importante perceber que campanhas se dão num contexto em que o Estado se desobriga cada vez mais das suas responsabilidades, uma característica do neoliberalismo. A preocupação que eu tenho é que qualquer campanha enfraqueça a lógica dos direitos, que veicule a idéia do pobre como uma vítima a ser ajudada. Estou mais preocupada com a cultura que está sendo disseminada do que com os resultados imediatos. Meu receio é que aqui fale-se muito de doação e pouco em direitos.

Folha - A senhora não está sugerindo a politização do trabalho voluntário?
Leilah
- Toda ação social é política. O trabalho voluntário é uma ação que se dá no campo da política, que enfrenta problemas que têm que ser resolvidos por políticas públicas. Acho perigoso o termo voluntariado vir despolitizado da ação social.





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