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Entrevista da 2ª- Samuel Pinheiro Guimarães
Secretário-geral do Itamaraty diz não haver ideologia no trabalho do ministério e nega antiamericanismo no governo Lula, mas manda recados sutis aos EUA
Para embaixador, política externa é só "pragmática"
ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA
DEPOIS DE atravessar os quatro anos do primeiro governo Lula falando muito para dentro do Itamaraty e pouco para fora, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães deu uma rara entrevista em que nega antiamericanismo no governo e classifica a política externa de "pragmática e não ideológica". Não deixou, porém, de mandar recados sutis aos EUA. "Um mundo melhor", segundo ele, "será aquele em que as promessas de desarmamento se realizem, os preceitos do Direito Internacional sejam obedecidos pelas grandes potências, as diferenças econômicas entre os Estados se reduzam e o meio ambiente seja preservado". Por exigência dele, as perguntas foram feitas por escrito e respondidas por e-mail. Segue a íntegra da entrevista.
FOLHA - O ex-embaixador em
Washington Roberto Abdenur declarou que há "um substrato ideológico vagamente anticapitalista, antiglobalização, antiamericano, totalmente superado" na política externa brasileira. O sr. concorda?
SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES - A
política externa do presidente
Lula, conduzida pelo ministro
Celso Amorim, é pragmática e
não ideológica; é a favor do trabalho sem ser contra o capital;
compreende que a globalização
apresenta oportunidades mas
também riscos para os países
subdesenvolvidos; é a favor do
Brasil e não contra qualquer
país.
Como o próprio presidente e
o ministro não se cansam de repetir, a política externa desperta o interesse e desfruta do respeito de todos os países, ricos e
pobres; do Ocidente e do Oriente; da América do Sul e do Norte, o que se reflete no grande
número de presidentes, primeiros-ministros, chanceleres,
autoridades e empresários que
vêm ao Brasil e desejam nossa
cooperação política, econômica e social.
FOLHA - Os críticos da política externa afirmam que o Brasil tem uma
participação há anos estacionada
em 1,4% da economia norte-americana, perdendo milhões de dólares
em negócios por conta de um suposto antiamericanismo. Como é possível menosprezar o principal mercado do mundo?
PINHEIRO GUIMARÃES - O aumento da presença da China no
mercado americano fez com
que, no período de 1999 a 2006,
nas importações americanas, a
participação do Canadá caísse
de 19% para 16,9%; a do Japão,
de 12,8% para 7,9%; a da Alemanha, de 5,3% para 4,9%; a da
França, de 2,5% para 2,0%. Ao
contrário, a participação do
Brasil cresceu de 1,1% para
1,4%, refletindo o aumento de
nossas exportações de US$ 10
bilhões para US$ 24 bilhões.
São as empresas brasileiras que
exportam: elas não menosprezaram o mercado americano,
nosso principal comprador, e
tiveram todo o apoio do governo brasileiro em seu esforço.
FOLHA - O sr. é uma espécie de símbolo do suposto antiamericanismo,
inclusive por ser ferrenho adversário
da Alca. Convém ao governo brasileiro mantê-lo no segundo cargo na
hierarquia do Itamaraty? O objetivo
é justamente marcar posição?
PINHEIRO GUIMARÃES - O cargo de
secretário-geral das Relações
Exteriores é de livre nomeação
do presidente Lula, por indicação do ministro Celso Amorim.
Cabe ao presidente e ao ministro, naturalmente, decidir sobre o que convém.
FOLHA - A Alca acabou, e o chanceler Amorim dizia que o importante
era a OMC. Mas as negociações na
OMC também empacaram. Onde o
Brasil está errando?
PINHEIRO GUIMARÃES - As negociações na OMC estão em pleno
andamento e há grandes expectativas. O Brasil tem tido papel
central nessas negociações na
liderança do G20 [grupo de 20
países em desenvolvimento liderado por Brasil e Índia] e em
entendimentos com os interlocutores dos Estados Unidos e
da União Européia.
As perspectivas de uma conclusão positiva para o Brasil são
maiores do que em qualquer
outro momento.
FOLHA - A adesão da Venezuela ao
Mercosul tem sido duramente criticada, pois seria uma forma de transformar o bloco em uma ponta-de-lança contra Washington, ou pelo
menos num palanque para o presidente Hugo Chávez atacar Bush. O
bônus da adesão compensa o ônus?
PINHEIRO GUIMARÃES - O comércio entre o Brasil e a Venezuela
passou de US$ 880 milhões em
2003 para US$ 4,1 bilhões em
2006. Empresas brasileiras fazem grandes investimentos e
constroem hidrelétricas, linhas
de metrô, pontes, represas e
sistemas de irrigação na Venezuela. Todos os membros do
Mercosul estão de acordo
quanto à adesão da Venezuela.
O Mercosul é uma união
aduaneira e não um bloco político de oposição a qualquer outro país e muito menos aos
EUA, que, aliás, percebem isto
perfeitamente.
FOLHA - Pelo menos na retórica,
Chávez está ganhando aliados na
região, como os presidentes Evo
Morales, da Bolívia, e Rafael Corrêa,
do Equador. É um novo pólo de poder?
PINHEIRO GUIMARÃES - Cada país
da América do Sul tem o direito
de cooperar com os demais países sem que isto signifique a
formação de pólos de poder.
Qualquer pretensão hegemônica de qualquer país encontra grande resistência dos
demais, e a forma natural de influência é o exemplo, o que supõe relações de parceria, como
as que o Brasil tem desenvolvido com cada país da América do
Sul, com excelentes resultados.
FOLHA - De outro lado, o governo
Bush praticamente escolheu o Irã
como novo alvo, digamos, das preocupações norte-americanas. Esse será um tema do encontro Lula-Bush
em 9 de março? O que o Brasil tem a
ver com isso?
PINHEIRO GUIMARÃES - A agenda
do encontro dos presidentes
ainda não está definida. O Brasil, que tem a sexta maior reserva de urânio do mundo, domina
a tecnologia de enriquecimento de urânio e tem uma demanda interna importante por
energia, defende o direito de todos os países de desenvolver a
tecnologia nuclear para fins pacíficos, desde que respeitados
fielmente os compromissos internacionais.
Nossa posição na AIEA se
pauta por este princípio e pela
preferência pelo diálogo como
forma de solucionar impasses.
FOLHA - Há duas versões no governo e no Itamaraty: uma de que o sr. é
decisivo para a formulação da política externa; outra de que, na verdade, é o grande executivo que está
"botando a casa em ordem". Qual a
verdadeira?
PINHEIRO GUIMARÃES - O presidente formula e dirige a política
externa com o auxílio do ministro. Ao secretário-geral cabem
as tarefas definidas pelo decreto 5979/2006, que são assessorar o ministro na execução da
política e na orientação da secretaria de Estado e das missões no exterior.
FOLHA - Por que o sr. participou dos
primeiros palanques do presidente
Lula na campanha do segundo mandato, mas de repente sumiu?
PINHEIRO GUIMARÃES - Todo cidadão brasileiro tem o direito, e
até o dever, de participar da vida política de seu país.
FOLHA - E por que o sr. decidiu impor livros de sua própria preferência
para os diplomatas que estejam
sendo promovidos ou assumindo
missões no exterior? Qual o viés desses livros? E porque o ministro determinou o fim da prática?
PINHEIRO GUIMARÃES - Gilberto
Freire disse: "O livro do sr. Álvaro Lins sobre o Barão do Rio
Branco é um destes livros que
desde as primeiras páginas nos
dão o gosto raro de contato com
uma obra monumental".
Celso Furtado, sobre Bielschowsky, disse: "Considero
"Pensamento Econômico Brasileiro" o mais importante trabalho já realizado para caracterizar e apreciar o considerável
esforço produzido entre nós a
fim de resgatar o Brasil das armadilhas do pensamento ortodoxo". Roberto Campos, ex-embaixador em Washington,
sobre Bielschowsky, disse:
"Erudito, objetivo e correto.
"Pensamento Econômico Brasileiro" é referência indispensável, por sua análise balanceada
e percuciente das controvérsias
ideológicas da época".
Rubens Ricupero, ex-embaixador em Washington, sobre o
livro de Moniz Bandeira disse:
"É uma obra original, uma autêntica história conjunta das
relações diplomáticas do Brasil
e da Argentina durante 133
anos. Tem razão, assim, o historiador americano Frank Mc
Cann, ao apresentá-la como
"leitura indispensável". Não conheço, nem creio que exista,
outro trabalho desse fôlego,
cerca de 680 páginas, que cubra
de modo tão completo e analítico o período contemporâneo".
Sobre "Chutando a Escada",
de Ha-Joon Chang, professor
de Cambridge, na Inglaterra,
Charles Kindleberger, um dos
maiores economistas americanos, disse: "uma crítica estimulante dos sermões dos economistas da corrente dominante
dirigidos aos países em desenvolvimento." O aperfeiçoamento dos diplomatas é uma
necessidade constante. A leitura de três ou quatro livros não
poderia jamais modificar o modo de pensar de qualquer diplomata, mas pode trazer informações importantes. O ministro
Celso Amorim considerou que
a celeuma provocada não justificava a energia despendida.
FOLHA - O que se deve esperar de
um bom diplomata? E de um diplomata brasileiro no mundo atual?
PINHEIRO GUIMARÃES - De um
bom diplomata se espera que
defenda e promova os interesses de seu país. De um diplomata brasileiro se espera que defenda e promova os interesses
do Brasil, de acordo com os objetivos da política externa definidos no Art. 4º da Constituição Federal, em especial a independência nacional, a não-intervenção e a autodeterminação, e com a orientação do Presidente da República.
FOLHA - Como o Brasil pode interferir para que o mundo seja melhor?
Aliás, o que seria, a seu ver, um
"mundo melhor"?
PINHEIRO GUIMARÃES - O Brasil
pode contribuir para a preservação da paz, para o desenvolvimento econômico e social, para
a construção da democracia na
esfera internacional, de tal forma que cada sociedade, observados os preceitos fundamentais de autodeterminação e
não-intervenção inscritos na
Carta da ONU, possa prosseguir em sua evolução histórica.
Um mundo melhor será
aquele em que as promessas de
desarmamento se realizem; em
que os preceitos do Direito Internacional sejam obedecidos
pelas grandes potências; em
que as diferenças econômicas
entre os Estados se reduzam;
em que o meio ambiente seja
preservado; em que os direitos
humanos, políticos, econômicos e sociais sejam respeitados;
em que a pobreza e a miséria
sejam abolidas; em que cada indivíduo possa desenvolver todo
o seu potencial. Com esses objetivos, o presidente Lula e o
ministro Celso Amorim têm
defendido a democratização
das instâncias internacionais
de decisão, como o Conselho de
Segurança da ONU e o G-8.
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