Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA DA 2ª/ MÁRCIO THOMAZ BASTOS
Após 50 meses no governo, ex-ministro da Justiça defende ações da polícia, nega
ter atuado como advogado do presidente e caracteriza Lula como um "democrata"
Houve reclamações de todos os lados sobre atuação da PF
KENNEDY ALENCAR
EM SÃO PAULO
O EX-MINISTRO Márcio
Thomaz Bastos revela
que ouviu "reclamações
de todos os lados", do governo e da oposição, a
respeito das operações da
Polícia Federal em seus
50 meses à frente do Ministério da Justiça. "É
uma questão de resistir às
pressões e tocar numa linha republicana", diz.
Um dos auxiliares mais
próximos do presidente
no primeiro mandato, ele
nega ter sido mais advogado do que ministro,
acusação que críticos lhe
atribuem. Aos 71 anos,
Bastos retoma a atividade
de advogado criminalista
-uma carreira de 50 anos
só interrompida na passagem pelo governo. Escreveu 17 cadernos com
um diário do primeiro ao
último dia de governo "só
colocando os fatos tal como os via, equilibrando
objetividade e subjetividade". Não sabe ainda
que "uso" fará deles. Falou à Folha em seu novo
escritório em São Paulo,
na quinta-feira passada.
FOLHA - A PF fez grandes operações em sua gestão, mas críticos
apontam um viés de marketing. Ela
também não elucidou o dossiegate
e o caso da violação do sigilo do caseiro, que envolviam figuras do governo e do PT.
MÁRCIO THOMAZ BASTOS - A PF
trabalha de uma maneira impessoal. Não persegue e não
protege. Foi reconstruída em
equipamentos, em treinamento de pessoal, em motivação,
em liderança e em planejamento estratégico. Houve uso intenso de inteligência. Atingiu
gente de todos os partidos.
Gente próxima ao governo,
gente de oposição ao governo.
Os dois casos citados foram
esclarecidos, relatados e enviados ao Ministério Público.
FOLHA - Não se sabe a origem do
dinheiro de compra do dossiê até
hoje nem o mandante.
THOMAZ BASTOS - Talvez nem se
saiba. Existem casos em que a
investigação tem um limite.
FOLHA - Em reuniões reservadas, o
presidente e o então ministro da Casa Civil, José Dirceu, reclamaram das
ações da PF que atingiram o governo e o PT, suspeitando de uso de setores dela pela oposição. O sr. recebia pressão para controlar a PF?
THOMAZ BASTOS - Não. Sempre
disse que não controlava a PF
nem queria controlá-la. Houve
reclamações? Houve reclamações de todos os lados. Do mesmo jeito quando atingia gente
ligada ao PSDB e ao PFL.
FOLHA - O presidente e José Dirceu
reclamaram?
THOMAZ BASTOS - O Lula nunca
reclamou.
FOLHA - Questionava?
THOMAZ BASTOS - Nunca questionou, mas eu explicava e contava as operações para ele, sobretudo as que atingiam muita gente. Em alguns casos, ele ficou chocado.
FOLHA - Por exemplo?
THOMAZ BASTOS - Aquele do dólar na cueca. Contei para ele logo após uma cerimônia no Palácio do Planalto, após uma solenidade. A primeira reação foi
não acreditar, achar que era um
pesadelo. Nunca houve uma ordem "não faça isso, não faça
aquilo", apesar de muitas vezes
ele ter recebido pressões enormes do partido dele, de aliados
e da oposição.
FOLHA - E Dirceu, reclamava?
THOMAZ BASTOS - Comigo não.
Agora, ninguém gosta de ser investigado pela PF. O sujeito
mais culpado do mundo não
gosta. É uma questão de resistir
às pressões e tocar em uma linha republicana. Paulo Lacerda [diretor-geral da PF] é inegavelmente a maior vocação de
policial que conheço.
FOLHA - O sr. defende que Tarso
Genro [novo ministro da Justiça] o
mantenha em definitivo?
THOMAZ BASTOS - Deveria continuar o resto da vida pela probidade, pelo brilho e pela liderança. Uma liderança dos atos e
não do que diz.
FOLHA - Uma crítica ao sr. é que teria agido mais como advogado do
governo, impedindo que Lula fosse
acusado de crimes de responsabilidade, do que como ministro da Justiça. É atribuída ao sr. a tese de que o mensalão foi crime eleitoral -forma de admitir um delito menos grave e minimizar danos políticos.
THOMAZ BASTOS - Não sou advogado do presidente. Eu era antes de assumir o Ministério da
Justiça. Como ministro, eu era
ouvido a respeito das questões.
Não articulei nem criei essa tese de crime eleitoral. Foi se
criando uma lenda.
FOLHA - Por quê?
THOMAZ BASTOS - Uma série de
circunstâncias. Havia uma oposição encarniçada, para a qual
não era má idéia derrubar o ministro da Justiça. Por outro lado, me superavaliavam como
advogado. Achavam que eu era
um Maquiavel, um sujeito capaz de organizar coisas e montar versões.
Quando assumi o Ministério
da Justiça, sabia que devia duas
lealdades. Uma lealdade com o
presidente e uma lealdade
maior com as instituições. Depois de quatro anos, posso afirmar que minha lealdade ao presidente não toldou minha lealdade às instituições.
FOLHA - No episódio do jornalista
Larry Rohter, essas duas lealdades
estiveram em choque? Se Lula tivesse insistido na decisão de cassar o
visto de permanência do correspondente do "New York Times" [por ter
escrito texto no qual citava comentários sobre suposto uso de álcool
por Lula], o que equivaleria politicamente à expulsão, teria cruzado o limite da democracia?
THOMAZ BASTOS - A reconsideração foi uma decisão sábia do
presidente. Me orgulho de tê-lo
ajudado a tomar essa decisão.
Naquele caso, o jornalista foi
enormemente injusto. Não
checou suas fontes. Fez uma
matéria altamente equivocada.
Entretanto, a decisão de expulsá-lo teve um estrépito tão
grande que obscureceu o erro
dele e criou a imagem de um governo prepotente. A reconsideração atendeu àquela lição da
Suprema Corte americana e
que está na nossa Constituição.
A Constituição não quer que a
imprensa seja justa. Quer que a
imprensa seja livre.
FOLHA - Por que é ruim a relação de
Lula e do PT com a imprensa?
THOMAZ BASTOS - Desconfiança
recíproca. O governo desconfiava da isenção da imprensa
brasileira. E a imprensa desconfiava dos caminhos que o
governo queria tomar e das lisuras das intenções do governo
em relação à própria imprensa.
Acredito que o presidente
aprendeu, e a imprensa aprendeu. No segundo mandato, poderão ser corrigidos os erros
que sombrearam a relação com
a imprensa.
FOLHA - O PT e o governo não têm
uma visão autoritária sobre o papel
da imprensa? Não a vêem como instituição, mas como instrumento,
contra ou a favor?
THOMAZ BASTOS - Todo governo
tem essa visão, com diferentes
níveis de tolerância. Todo governo tende a achar que a imprensa está errando porque um
dos papéis da imprensa é criticar o governo. A crítica à oposição é "en passant". E aqueles
partidos e grupos políticos que
têm a certeza de que estão trabalhando pelo bem da nação e
que têm um grande fim a ser
atingido muitas vezes tendem a
achar que tudo que atrapalhe
aquilo é inimigo.
FOLHA - O sr. é a favor da rede pública de TV que Lula deseja criar?
THOMAZ BASTOS - Depende muito de como isso será colocado.
Uma TV de governo, não. TV
"Voz do Brasil", de jeito nenhum. Mas uma TV pública,
como nas democracias avançadas, pode ser considerada com
muito cuidado e estruturada
após longo debate. Com gestão
independente, conselho curador, de modo que não possa ser
manipulada.
FOLHA - O estilo do presidente, de
dizer "nosso Delúbio", de se referir
aos petistas envolvidos no dossiê como "meninos", não transmitiu excesso de cordialidade e informalidade que contribuiu para que ocorresse o mensalão e o dossiegate?
THOMAZ BASTOS - Não. Conheço
o Lula bem. Ele me conhece
bem. Gosto muito dele. Ele gosta muito de mim. Ele demonstra afetividade. Esse estilo cordial faz parte da natureza dele.
FOLHA - O homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda?
THOMAZ BASTOS - Nem um pouco. Ele tem um respeito pelas
instituições republicanas que
foi adquirindo na prática.
Aprendeu no sindicato, na vida
política na oposição e no governo. Nas crises, vários ministros
ligadíssimos a ele saíram do governo. Eram sujeitos que faziam parte da vida afetiva dele,
mas ele não hesitou em tomar
as decisões que precisava.
O discurso de posse de Milton
Campos no governo de Minas
em 1947 parece um tratado de
política republicana. Ele disse
"um governo mais da lei do que
dos homens". O governo Lula é
também dos homens, mas é
muito mais da lei.
FOLHA - Não houve momentos de
tentação autoritária?
THOMAZ BASTOS - Queria fazer
uma biografia do Lula com suas
três ressurreições. No primeiro
momento, superou os obstáculos da saga de um nordestino
pobre que migra para o Sul e
melhora de vida.
A segunda saga é a política.
Funda o PT. E perde quatro
eleições majoritárias, uma
atrás da outra. Perde em 1982,
para o governo de São Paulo.
Em 1989, 1994 e 1998 perdeu
três disputas presidenciais.
Ninguém na história das repúblicas ocidentais perdeu
quatro eleições seguidas e sobreviveu. François Mitterrand
[presidente da França entre
1981 e 1995] perdeu duas. Há
casos de políticos que perderam uma ou duas e ganharam a
seguinte. Lula perdeu quatro,
renasceu e se elegeu em 2002.
Imaginou que tivesse chegado ao paraíso. Aí veio a crise de
2005, na qual ele perdeu a liderança nas pesquisas, sofreu baixa de popularidade e se recuperou em 2006.
Enfrentou uma
crise no primeiro turno, a do
dossiê, e se reelegeu com mais
de 60% dos votos no segundo
turno porque fez um governo
bom, que distribuiu renda com
uma política macroeconômica
consistente.
Nessas sagas, ele sempre agiu
como um democrata. Lula nunca cruzou as linhas democráticas e institucionais.
FOLHA - Esse discurso inaugural,
do "nunca antes neste país", não é
injusto com as conquistas acumuladas em outros governos e que ajudam a gestão Lula?
THOMAZ BASTOS - Claro que ele
trabalha em cima de conquistas. Mas é o entusiasmo de
quem está empolgado pelo trabalho que faz.
FOLHA - Não soa gabola?
THOMAZ BASTOS - Pode soar gabola. Mas passei 50 meses ao lado dele e vi como ele aprendeu
a governar, como nós todos. Eu
era uma coisa em 2003. Ele era
uma coisa em 2003. Ele é outra.
Em 2007, tem o governo na
mão. Sabe o que quer. Tem um
ceticismo saudável em relação
à máquina pública. É um homem maduro para fazer um
grande mandato.
FOLHA - Lula tem se comparado a
JK e Getúlio, muitas vezes dizendo
que seu governo foi melhor do que o
deles. Não é exagero?
THOMAZ BASTOS - Lula é uma
grande liderança política, como
talvez nunca tenha havido no
Brasil. Daqui a alguns anos, a
era Lula será citada como a
mais nítida e a mais importante
do Brasil. Vai obscurecer muitos outros presidentes. Será um
marco tão importante que provocará efeitos nas outras gerações, como Getúlio provocou.
Lula sabe que, nesse mandato, ele joga a sua sorte de grande
líder e presidente.
FOLHA - Lula pode ser candidato
em 2014?
THOMAZ BASTOS - Tem chance
de ser. É uma liderança com nitidez e prestígio no mundo inteiro. A figura do Lula e o seu
governo provocam admiração
no Brasil e lá fora. É um homem
saudável, que se cuida mais no
governo. Está mais vaidoso.
Texto Anterior: Toda Mídia - Nelson de Sá: Sem trégua Próximo Texto: Frases Índice
|