São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002

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ELIO GASPARI

A caixa da Nara (cerca de R$ 250) é a boa notícia do ano

Faz muito tempo que não aparecia notícia tão boa. É o lançamento da caixa de 14 CDs de Nara Leão. Como diria o pessoal do mercado, a notícia é boa do ponto de vista negocial. Há lojas pedindo em torno de R$ 250, mas na Fnac (.com.br) ela sai por R$ 192. Do jeito que as coisas andavam, para comprar um CD da Nara tinha-se que recorrer a catálogos estrangeiros que cobravam R$ 70 por peça. Se Deus é brasileiro, a gravadora fará com que a patuléia possa comprar as unidades avulsas.
Como a opinião do pessoal do mercado pode estar influenciada pelas mutretas da Merrill Lynch, é preferível falar da caixa pelas suas características realmente relevantes.
Nara Leão não tinha voz, jeito ou estampa. Pois foi a voz, o jeito e a estampa de um tempo em que o Brasil acreditava em si. Viveu seu período de esplendor na segunda metade dos anos 60 e morreu em 1989, aos 47 anos. Falou-se muito dos seus joelhos. Facilitário. Os de Hillary Clinton também são recheados. Os de Nara tinham o jeito dela, e mulher com o jeito de seus joelhos não é coisa que se vê todo dia.
Aquela moça de olhar enorme e doce poderia ter sido tudo na vida, menos cantora. Sua interpretação de "Opinião" tornou-se o desabafo de um povo que acabou calado:
"Podem me prender
Podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião".
Esse verso transformou-se no primeiro protesto musical contra a ditadura militar de 1964. Parecia um protesto genérico, mas era apenas a reclamação de um favelado que não queria deixar o seu barraco. (O que não era pouca coisa, numa época em que se incendiavam favelas.)
É comum confundir os melhores momentos de Nara com o que se denominava "canção de protesto". É provável que isso seja uma simplificação. Ela foi a alma de composições geniais de um período de rara criatividade na cultura brasileira. Sua poesia não estava no protesto, mas na doçura com que ela protestava, se é que protestava. Só a sua voz traz o tom certo para algumas poesias:
"E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade
A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir
Voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar"
(Incrível verso, composto por Carlos Lyra e Vinicius de Moraes antes da deposição de João Goulart.)
"A sorrir eu pretendo levar a vida
Pois chorando eu vi a mocidade, perdida"
(Coisa de Cartola e Elton Medeiros.)
"Eu estava à toa na vida, o meu amor me chamou
Para ver a banda passar".
(Com essa música, o Brasil aprendeu, para não esquecer, que surgira um compositor chamado Chico Buarque de Holanda.)
Numa época em que o doutor Armínio garante 18,5% ao ano de juros para o andar de cima, vale ouvi-la cantando Carlos Lyra e Vinicius de Moraes:
"O rico acorda tarde
E já começa a resmungar
O pobre acorda cedo
E já começa a trabalhar.
Vou pedir ao meu babalorixá
Pra fazer uma oração pra Xangô
Botar pra trabalhar
Gente que nunca trabalhou".
Só a voz de Nara dá a essas palavras o tom de doçura e ironia que fizeram dela a artista que foi. (Ouvi-la cantando estridências tomadas emprestado ao folclore rural, como "Carcará", é o preço que a admiração paga à demagogia.)
Mais da metade da população brasileira nasceu depois do tempo de Nara. Ainda bem, porque, feitas as contas, pode ter sido uma época bonita, mas foi também muito ruim. Pois é aí que a caixa de 14 CDs volta a ser uma boa notícia. No Brasil de hoje, a artista plástica Pinky Wainer (sobrinha de Nara) tinha um problema: criar uma embalagem para 14 discos. Produziu uma maravilha do desenho industrial, daquelas que quando a gente vê nas vitrines do Museu de Arte Moderna de Nova York acha que só os suecos são capazes de tamanha criatividade. A partir das quatro letras de Nara e das outras quatro de Leão ela concebeu um cubo de poliuretano que funciona como invólucro da caixa dos CDs. Todas as gravadoras do mundo que lançaram coleções com mais de dez CDs poderiam ter chegado a essa idéia. Só Pinky sacou que o cubo com tampa de plástico transparente é a solução certa para semelhante problema. (As caixas de Mozart, no estilo sabão em pó, desmancham-se com o tempo. Um álbum de Frank Sinatra já teve a forma de mala e outro da banda Public Image foi uma caixa de plástico, mas ambas estavam mais para alegoria do que para criação.)
Graças a Nara e Pinky pode-se ter o prazer de visitar uma época em que se diziam coisas que hoje parecem adoráveis bobagens:
"Esse mundo é meu (..)
Santo guerreiro da floresta
Se você não vem,
Eu mesmo vou brigar".

A banda de Jersey

Beleza de coligação a do tucanato com o PMDB. O deputado Henrique Alves esteve com um pé e meio na Vice-Presidência de José Serra até que se desmaterializou porque descobriu-se uma conta secreta do doutor no paraíso de Jersey. Feita a denúncia (por sua ex-mulher), a candidatura sumiu, mas a conta ficou onde esteve. Ou era mentira e a candidatura devia ter persistido, pois não se faz uma coisa dessa com um homem de bem, ou era verdade, e a banda do PMDB que o apoiava deve se explicar à patuléia.
Como diria FFHH, o Brasil corre o risco de virar Argentina. Sem dúvida. Corre esse risco por conta das insuficiências (possíveis) de um governo petista e das malfeitorias (comprovadas) do seu reinado.

Apuro

Está na mesa do ministro de Minas e Energia, Francisco Gomide, um ofício (41/2002) do procurador Flávio Paixão de Moura Jr. Nele, comunica a instauração de procedimento administrativo para apurar possíveis irregularidades ocorridas na Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais, a CPRM. Coisas como:
1) "Contratações sem concurso público de empregados".
2) "Contratação de empregados dispensados no Plano de Desligamento Incentivado retornando com salários muito maiores do que recebiam antes da dispensa".
3) "Gastos dispendiosos com dinheiro público".
A CPRM é presidida pelo doutor Umberto Raimundo Costa. A iniciativa do procurador permitirá que se faça uma adequada avaliação de seu desempenho.

O milagre romano da Viúva brasileira

Aí em cima estão duas imagens. Uma é a de Carlos 4º da Espanha, com sua família, pintada por Goya. Tinha tudo para ser uma celebração, mas há nela algo de estranho, como se o pintor tivesse dado uma opinião sobre cada um dos retratados e sobre o próprio grupo de dez adultos e quatro crianças. A outra é a de FFHH do Brasil e da comitiva de 13 adultos e uma criança que levou ao papa para celebrar a santificação de madre Paulina.
Deixando de lado o neto de FFHH e João Paulo 2º, não há entre os notáveis dessa fotografia (nem no quadro de Goya) uma só pessoa que tenha dependido da leitura de um balanço para encher a geladeira. Todos eles, exceto três das senhoras, a criança e o papa, vivem do erário. Dois (Aécio Neves e Ramez Tebet) estavam em Roma por devoção ao próprio futuro político, fugindo do demônio da inelegibilidade que os atingiria se ocupassem a Presidência da República. O salário de qualquer um dos notáveis seria suficiente para manter por bom tempo a pobre casa de 24 metros quadrados onde madre Paulina atendia órfãos e doentes em Nova Trento (SC), no final do século 19.
Admitindo que nenhum deles pudesse repassar o que ganha a madre Paulina, pois (em tese) ficariam sem dinheiro, registre-se que três -FFHH, Esperidião Amin e Ramez Tebet- acumulam quatro milagrosas aposentadorias. FFHH recebe algo em torno de R$ 6.000 da Universidade de São Paulo. Aos 54 anos, Amin tem direito a R$ 6.000 por ter sido governador de Santa Catarina entre 1983 e 1987. O pecuarista Tebet acumula outros R$ 6.000. São R$ 5.200 por ter sido governador de Mato Grosso e R$ 800 como professor.
Num país onde o povo se aposenta em média com menos de R$ 200 por mês, um pedaço do andar de cima usufrui o milagre da aposentadoria por "ter sido". Quando o repórter Rubens Valente perguntou a Tebet se ele dependia desse dinheiro para viver, o senador deu a seguinte resposta: "Claro que não dependo. Graças a Deus".
Deus é pai, mas a mãe das comitivas e das graças recebidas por Tebet é a Viúva. Quando madre Paulina teve que se relacionar com o poder da hierarquia eclesiástica (leia-se o arcebispo de São Paulo, d. Duarte Leopoldo e Silva), foi destituída da direção de sua obra e passou por nove anos de humilhações. Chegou à santidade servindo ao andar de baixo. Santificada, serviu para que o andar de cima fizesse uma viagenzinha a Roma, à custa de benemérita Viúva do Brasil.

$alomé

Um pedaço do PFL está fazendo um ataque especulativo contra um dos delegados da Receita Federal em São Paulo.
Não tem erro: toda vez que há algum deputado pedindo a cabeça de um delegado da Receita, é a bolsa da Viúva quem corre risco.
Por que o PFL não fica na oposição?

Saúde ou saúva?

Metido numa polêmica em torno da moralidade do preço da energia elétrica (já que a choldra está pagando mais caro por ter recebido menos luz), o ministro-chefe do Gabinete Civil, doutor Pedro Parente, criou um novo personagem econômico, a "distribuidora saudável". Disse o seguinte:
"Interessa ao país e é indispensável para os consumidores a existência de distribuidoras saudáveis, que possam prestar serviços com qualidade, a preços justos e que tenham condições de investir".
Ninguém pode contestá-lo. Resta saber se o doutor está a fim de dizer o seguinte:
"Interessa ao país e é indispensável para os concessionários de serviços públicos a existência de consumidores saudáveis, que possam receber serviços de qualidade, com salários justos, e que tenham condições de poupar".
Nos oito anos de mandarinato do doutor Parente, as tarifas de energia elétrica residencial subiram em torno de 100%, enquanto a renda da patuléia ficou onde estava.


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