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NO PLANALTO
A culpa é de Noé, que admitiu o casal de ratos na Arca
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Lula disse que é o homem
mais "ético" que ele conhece. O único com "autoridade moral" para combater a corrupção.
Os comentários cobram a formulação de hipóteses. Na melhor das
hipóteses, Lula é mesmo o messias
que imagina. Na pior das hipóteses, a honestidade perdeu todo o
sentido.
Vá lá que Deus escreva certo por
linhas tortas. Mas nenhum messias que se preza faria uma aliança com Roberto Jefferson. Deve-se, portanto, descartar a melhor
hipótese. Fique-se com a pior. Ou
seja: a promiscuidade independe
do caráter do presidente. A retidão de Lula não faz a menor diferença.
O "quanto eu levo nisso?" é um
defeito congênito de Brasília.
Nascida de um canteiro de obras
lamacento, a cidade não poderia
ter dado em outra coisa. Desde o
início, era um lugar propício aos
movimentos pesados, um espaço
talhado para o trânsito de tratores, fenemês e petebês.
Lula começa a se dar conta de
que chegou ao poder enfeitiçado
por um tipo de ilusão que Brasília
não perdoa num presidente: a ilusão de que preside. Natural que
ele agora decida enfrentar a crise
à maneira do avestruz. Foge da
realidade enfiando a cabeça na
auto-estima.
Um presidente honrado que
preside uma "ilicitocracia" e continua empunhando a bandeira
da moralidade confunde a platéia. Uma parte acha que ele é um
cínico. A outra acha que é um banana. Em nenhum dos dois casos
Lula é a utopia que 52 milhões de
pessoas compraram em 2002. Daí
a conveniência da visão de um
Lula casto, tragado por uma capital vocacionada para o ilícito.
Para reforçar a auto-imagem,
Lula convocou Duda Mendonça
ao Planalto. Ensaiou com o marqueteiro a mensagem lida na TV
na noite de quinta-feira. O discurso soou como um grito de "teatro" dentro do incêndio. De novo,
a culpa não é do presidente, mas
do ambiente.
Só em Brasília um personagem
como Jefferson, importado da região serrana do Rio, poderia converter-se em herói da resistência.
Ao expor à luz radiante do cerrado aquilo que o escurinho dos gabinetes projetados por Niemeyer
camuflava, Jefferson quebrou a
normalidade seca da capital da
República.
Não restou a Lula senão a alternativa de restaurar a ordem pelo
recurso à fantasia. Depois de ouvir o presidente, os brasileiros inocentes, ainda em maioria, foram
dormir com a impressão de que
Brasília continua insuperável na
produção de bons pronunciamentos oficiais. O sonho está vivo.
Difícil aceitar a tese de que Lula, cigarrilha holandesa entre os
dedos, pés sobre a mesa, tenha
discutido com Zé "Sai Rápido
Daí" Dirceu o quanto de rapinagem seria preciso aceitar para
conviver com um Congresso impuro e obter a ansiada reeleição.
A simples admissão da hipótese
transformaria a sociedade num
aglomerado de bobos. Melhor
conviver com a idéia de uma
conspiração brasiliense que empurra Lula para o descuido. Ocupado em salvar o Brasil, o presidente não tem mesmo muito tempo para se preocupar com detalhes.
É um alívio constatar que, em
meio ao pipocar de escândalos
que transforma o roteiro épico
vendido na campanha eleitoral
num script policial de segunda,
Lula ainda dispõe de anteparos
providenciais. Personagens como
"Sai Rápido Daí" Dirceu e Delúbio "Unha Encravada" Soares, típicos da fauna de Brasília, estão
em cena justamente para livrar o
presidente virtuoso de cuidados
banais.
Julgar Lula apenas pelas más
companhias seria tratá-lo como
um presidente qualquer. E Lula é
a "ética" eleita para fazer tudo diferente. É certo que Jeffersons, Janenes, Valdemares e outros azares não faziam parte da diferença. Mas, a essa altura, o melhor
que o eleitor tem a fazer é responsabilizar os anteparos.
Deve-se dar de barato que, sob a
supervisão de "Sai Rápido Daí"
Dirceu, "Unha Encravada" Soares comercializou a sua influência
no governo à revelia da "ética"
presidencial. Deve-se engolir a tese de que "Silvíssimo Pereira"
aparelhou a máquina pública
desde um gabinete vizinho ao da
"autoridade moral" sem que ela
soubesse do malfeito. Deve-se, por
último, relevar certas distrações
de Lula.
O presidente andou dizendo
que não hesitaria em confiar um
"cheque em branco" a Jefferson.
Bobagem, porém, exigir de alguém tão descuidado com a própria biografia um zelo exacerbado pelo talão de cheques. O manuseio de papéis não é, definitivamente, o forte de Lula.
De resto, é preciso considerar os
efeitos que o ar de Brasília exerce
sobre a honorabilidade de Lula. O
que, à primeira vista, parece falta
de escrúpulos não passa de intoxicação. A poluição a que Lula está
habituado é de outro tipo. Os gases que emanam do solo de Brasília não se comparam à fumaça
que sai dos escapamentos de São
Bernardo.
Num arroubo de lucidez, Lula
despachou "Sai Rápido Daí" Dirceu do Planalto para a planície. O
ex-chefão da Casa Civil desceu
munido de retórica militar. Pronunciou uma declaração de
"guerra" e cruzou o pórtico do
Congresso seguido por uma falange petista. Esperava-se que fosse à sorte das armas já no primeiro discurso. Mas ele escondeu o
arsenal.
Do alto da tribuna, "Sai Rápido
Daí" Dirceu respondeu com estrepitoso silêncio à acusação de Jefferson -"Ele chefia o maior esquema de corrupção do Brasil".
Por ora, não se sabe se a omissão
visa confundir o inimigo ou ocultar a falta de munição. Depois,
em depoimento à Corregedoria
da Câmara, protegido por quatro
paredes, o ex-ministro preferiu a
defesa ao ataque. Negando até o
que parecia incontroverso, disse
que só soube do "mensalão" pela
imprensa.
Outras batalhas estão por vir.
Quando for ouvido pelos deputados da Comissão de Ética, dessa
vez diante das câmeras, "Sai Rápido Daí" Dirceu terá a oportunidade de sacar novas verdades. Recomenda-se que evite a reutilização do festim da "conspiração da
elite". Faltando-lhe pólvora, sempre poderá dizer que a culpa é de
Brasília. Ou de Noé, que não matou o casal de ratos que entrou na
famosa Arca.
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