São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

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NO PLANALTO

A culpa é de Noé, que admitiu o casal de ratos na Arca

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Lula disse que é o homem mais "ético" que ele conhece. O único com "autoridade moral" para combater a corrupção. Os comentários cobram a formulação de hipóteses. Na melhor das hipóteses, Lula é mesmo o messias que imagina. Na pior das hipóteses, a honestidade perdeu todo o sentido.
Vá lá que Deus escreva certo por linhas tortas. Mas nenhum messias que se preza faria uma aliança com Roberto Jefferson. Deve-se, portanto, descartar a melhor hipótese. Fique-se com a pior. Ou seja: a promiscuidade independe do caráter do presidente. A retidão de Lula não faz a menor diferença.
O "quanto eu levo nisso?" é um defeito congênito de Brasília. Nascida de um canteiro de obras lamacento, a cidade não poderia ter dado em outra coisa. Desde o início, era um lugar propício aos movimentos pesados, um espaço talhado para o trânsito de tratores, fenemês e petebês.
Lula começa a se dar conta de que chegou ao poder enfeitiçado por um tipo de ilusão que Brasília não perdoa num presidente: a ilusão de que preside. Natural que ele agora decida enfrentar a crise à maneira do avestruz. Foge da realidade enfiando a cabeça na auto-estima.
Um presidente honrado que preside uma "ilicitocracia" e continua empunhando a bandeira da moralidade confunde a platéia. Uma parte acha que ele é um cínico. A outra acha que é um banana. Em nenhum dos dois casos Lula é a utopia que 52 milhões de pessoas compraram em 2002. Daí a conveniência da visão de um Lula casto, tragado por uma capital vocacionada para o ilícito.
Para reforçar a auto-imagem, Lula convocou Duda Mendonça ao Planalto. Ensaiou com o marqueteiro a mensagem lida na TV na noite de quinta-feira. O discurso soou como um grito de "teatro" dentro do incêndio. De novo, a culpa não é do presidente, mas do ambiente.
Só em Brasília um personagem como Jefferson, importado da região serrana do Rio, poderia converter-se em herói da resistência. Ao expor à luz radiante do cerrado aquilo que o escurinho dos gabinetes projetados por Niemeyer camuflava, Jefferson quebrou a normalidade seca da capital da República.
Não restou a Lula senão a alternativa de restaurar a ordem pelo recurso à fantasia. Depois de ouvir o presidente, os brasileiros inocentes, ainda em maioria, foram dormir com a impressão de que Brasília continua insuperável na produção de bons pronunciamentos oficiais. O sonho está vivo.
Difícil aceitar a tese de que Lula, cigarrilha holandesa entre os dedos, pés sobre a mesa, tenha discutido com Zé "Sai Rápido Daí" Dirceu o quanto de rapinagem seria preciso aceitar para conviver com um Congresso impuro e obter a ansiada reeleição. A simples admissão da hipótese transformaria a sociedade num aglomerado de bobos. Melhor conviver com a idéia de uma conspiração brasiliense que empurra Lula para o descuido. Ocupado em salvar o Brasil, o presidente não tem mesmo muito tempo para se preocupar com detalhes.
É um alívio constatar que, em meio ao pipocar de escândalos que transforma o roteiro épico vendido na campanha eleitoral num script policial de segunda, Lula ainda dispõe de anteparos providenciais. Personagens como "Sai Rápido Daí" Dirceu e Delúbio "Unha Encravada" Soares, típicos da fauna de Brasília, estão em cena justamente para livrar o presidente virtuoso de cuidados banais.
Julgar Lula apenas pelas más companhias seria tratá-lo como um presidente qualquer. E Lula é a "ética" eleita para fazer tudo diferente. É certo que Jeffersons, Janenes, Valdemares e outros azares não faziam parte da diferença. Mas, a essa altura, o melhor que o eleitor tem a fazer é responsabilizar os anteparos.
Deve-se dar de barato que, sob a supervisão de "Sai Rápido Daí" Dirceu, "Unha Encravada" Soares comercializou a sua influência no governo à revelia da "ética" presidencial. Deve-se engolir a tese de que "Silvíssimo Pereira" aparelhou a máquina pública desde um gabinete vizinho ao da "autoridade moral" sem que ela soubesse do malfeito. Deve-se, por último, relevar certas distrações de Lula.
O presidente andou dizendo que não hesitaria em confiar um "cheque em branco" a Jefferson. Bobagem, porém, exigir de alguém tão descuidado com a própria biografia um zelo exacerbado pelo talão de cheques. O manuseio de papéis não é, definitivamente, o forte de Lula.
De resto, é preciso considerar os efeitos que o ar de Brasília exerce sobre a honorabilidade de Lula. O que, à primeira vista, parece falta de escrúpulos não passa de intoxicação. A poluição a que Lula está habituado é de outro tipo. Os gases que emanam do solo de Brasília não se comparam à fumaça que sai dos escapamentos de São Bernardo.
Num arroubo de lucidez, Lula despachou "Sai Rápido Daí" Dirceu do Planalto para a planície. O ex-chefão da Casa Civil desceu munido de retórica militar. Pronunciou uma declaração de "guerra" e cruzou o pórtico do Congresso seguido por uma falange petista. Esperava-se que fosse à sorte das armas já no primeiro discurso. Mas ele escondeu o arsenal.
Do alto da tribuna, "Sai Rápido Daí" Dirceu respondeu com estrepitoso silêncio à acusação de Jefferson -"Ele chefia o maior esquema de corrupção do Brasil". Por ora, não se sabe se a omissão visa confundir o inimigo ou ocultar a falta de munição. Depois, em depoimento à Corregedoria da Câmara, protegido por quatro paredes, o ex-ministro preferiu a defesa ao ataque. Negando até o que parecia incontroverso, disse que só soube do "mensalão" pela imprensa.
Outras batalhas estão por vir. Quando for ouvido pelos deputados da Comissão de Ética, dessa vez diante das câmeras, "Sai Rápido Daí" Dirceu terá a oportunidade de sacar novas verdades. Recomenda-se que evite a reutilização do festim da "conspiração da elite". Faltando-lhe pólvora, sempre poderá dizer que a culpa é de Brasília. Ou de Noé, que não matou o casal de ratos que entrou na famosa Arca.


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