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ELIO GASPARI
A receita do Martin Burger King é velha
Os republicanos da Califórnia tentaram o truque, mas a decência e a viúva do pastor fizeram-nos recuar
AQUI VAI UMA nota de pé de página para a bibliografia do
manifesto do Burger King,
aquele que condenou a Lei das Cotas
e o Estatuto da Igualdade Racial
com diversos argumentos, inclusive
uma variante da famosa fala de Martin Luther King de 1963.
O manifesto disse o seguinte:
"Nosso sonho é o de Martin Luther
King, que lutou para viver numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor de sua pele, mas pela
força de seu caráter".
King disse quase isso: "Eu tenho
um sonho, no qual minhas quatro
pequenas crianças viverão num país
onde não serão julgadas pela cor de
sua pele, mas pelo seu caráter".
Quando King discursou ainda havia estabelecimentos públicos e restaurantes americanos que não admitiam negros. O uso da frase para
alavancar propostas de condenação
de políticas de ação afirmativa que
levem em conta a cor dos cidadãos é
imprópria. Os redatores do manifesto fariam muito bem se procedessem como os similares americanos.
Aos fatos: essa não foi a primeira
vez que usaram King como tempero
de sanduíche. O mesmo trecho já foi
manipulado em 1996, na Califórnia,
por marqueteiros do Partido Republicano, durante a campanha pela
aprovação de uma proposta que acabava com as políticas de ações afirmativas baseadas em critérios de raça, gênero ou nacionalidade. Era a
"Proposition 209", na qual um grupo de cidadãos sustentava que a legislação contrária à discriminação
racial impede que um negro, por ser
negro, ocupe um lugar que deveria ir
para um branco.
O trecho do discurso de King, em
vídeo, foi incluído num anúncio de
televisão da propaganda contra a
ação afirmativa. Antes que a peça
fosse ao ar, a comunidade negra protestou. Coretta King, viúva do reverendo, divulgou uma nota, assinada
também pelo seu filho Dexter, onde
dizia: "Aqueles que sugerem que ele
não apoiaria a ação afirmativa, estão
deturpando suas crenças e, na verdade, o trabalho de sua vida".
Até aí, pode-se argumentar que a
senhora era um ícone da comunidade negra e disse o que se esperava
que dissesse. Nesse caso, merece
atenção o que disse o professor Thomas Wood, co-autor da "Proposition 209": "O problema é que há provas de sobra mostrando que King
achava que os negros tinham direito
a tratamentos preferenciais".
Outros líderes do movimento,
mesmo sustentando que havia afinidade entre as palavras de King e a
"Proposition 209" condenaram o
uso do seu nome no anúncio. Uma
coisa seria discutir (ou conjeturar)
as idéias do pastor. Bem outra, usá-lo como muleta. Os marqueteiros
republicanos suprimiram o trecho
contestado. Ele nunca foi ao ar.
Wood é contra ações afirmativas,
mas é um sujeito decente. Entrou na
briga sem um tostão no bolso. A
"Proposition 209" venceu por 54% a
46%. Pela vontade de seu povo, o Estado da Califórnia mandou ao brejo
as cotas e preferências baseadas em
critérios de raça ou de gênero.
O sonho de Martin Luther King
não era o de Wood. Mesmo que o
professor achasse que era, recusou-se a usar as palavras do reverendo
numa peça contra as ações afirmativas. Ninguém é obrigado a sonhar
como os outros. O que não se pode é
tungar sonho alheio.
Gente como Wood faz uma falta
danada em Pindorama.
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