São Paulo, quarta-feira, 26 de julho de 2006

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ELIO GASPARI

A receita do Martin Burger King é velha

Os republicanos da Califórnia tentaram o truque, mas a decência e a viúva do pastor fizeram-nos recuar

AQUI VAI UMA nota de pé de página para a bibliografia do manifesto do Burger King, aquele que condenou a Lei das Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial com diversos argumentos, inclusive uma variante da famosa fala de Martin Luther King de 1963.
O manifesto disse o seguinte: "Nosso sonho é o de Martin Luther King, que lutou para viver numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor de sua pele, mas pela força de seu caráter".
King disse quase isso: "Eu tenho um sonho, no qual minhas quatro pequenas crianças viverão num país onde não serão julgadas pela cor de sua pele, mas pelo seu caráter".
Quando King discursou ainda havia estabelecimentos públicos e restaurantes americanos que não admitiam negros. O uso da frase para alavancar propostas de condenação de políticas de ação afirmativa que levem em conta a cor dos cidadãos é imprópria. Os redatores do manifesto fariam muito bem se procedessem como os similares americanos.
Aos fatos: essa não foi a primeira vez que usaram King como tempero de sanduíche. O mesmo trecho já foi manipulado em 1996, na Califórnia, por marqueteiros do Partido Republicano, durante a campanha pela aprovação de uma proposta que acabava com as políticas de ações afirmativas baseadas em critérios de raça, gênero ou nacionalidade. Era a "Proposition 209", na qual um grupo de cidadãos sustentava que a legislação contrária à discriminação racial impede que um negro, por ser negro, ocupe um lugar que deveria ir para um branco.
O trecho do discurso de King, em vídeo, foi incluído num anúncio de televisão da propaganda contra a ação afirmativa. Antes que a peça fosse ao ar, a comunidade negra protestou. Coretta King, viúva do reverendo, divulgou uma nota, assinada também pelo seu filho Dexter, onde dizia: "Aqueles que sugerem que ele não apoiaria a ação afirmativa, estão deturpando suas crenças e, na verdade, o trabalho de sua vida".
Até aí, pode-se argumentar que a senhora era um ícone da comunidade negra e disse o que se esperava que dissesse. Nesse caso, merece atenção o que disse o professor Thomas Wood, co-autor da "Proposition 209": "O problema é que há provas de sobra mostrando que King achava que os negros tinham direito a tratamentos preferenciais".
Outros líderes do movimento, mesmo sustentando que havia afinidade entre as palavras de King e a "Proposition 209" condenaram o uso do seu nome no anúncio. Uma coisa seria discutir (ou conjeturar) as idéias do pastor. Bem outra, usá-lo como muleta. Os marqueteiros republicanos suprimiram o trecho contestado. Ele nunca foi ao ar.
Wood é contra ações afirmativas, mas é um sujeito decente. Entrou na briga sem um tostão no bolso. A "Proposition 209" venceu por 54% a 46%. Pela vontade de seu povo, o Estado da Califórnia mandou ao brejo as cotas e preferências baseadas em critérios de raça ou de gênero.
O sonho de Martin Luther King não era o de Wood. Mesmo que o professor achasse que era, recusou-se a usar as palavras do reverendo numa peça contra as ações afirmativas. Ninguém é obrigado a sonhar como os outros. O que não se pode é tungar sonho alheio.
Gente como Wood faz uma falta danada em Pindorama.


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