São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 2002

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ENTREVISTA DE 2ª

Garay diz que prédios ruins atrapalham revitalização de SP

Consultor do BID defende modernização do centro

SÉRGIO DURAN
DA REPORTAGEM LOCAL

O desafio para revitalizar o centro histórico de São Paulo é encontrar espaço para a modernidade em meio ao emaranhado de prédios, muitos de má qualidade.
A tese é defendida pelo urbanista argentino Alfredo Garay, 51, ex-secretário de Planejamento de Buenos Aires (1989-1992), professor de duas importantes universidades daquele país e coordenador do projeto modelo Puerto Madero, que revitalizou parte da região portuária portenha.
Há cerca de duas semanas, Garay esteve em São Paulo como consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O município acerta um empréstimo de US$ 100 milhões do banco, que financiarão os projetos de revitalização do centro histórico. O urbanista defendeu a inclusão dos camelôs no processo. Leia a entrevista concedida de Buenos Aires por telefone:

Folha - O perfil do centro de São Paulo é muito diferente do de outras capitais latino-americanas?
Garay -
O centro de São Paulo tem muitas particularidades, sobretudo por causa das transformações que ocorreram entre as décadas de 30 e 50, quando houve uma grande verticalização da cidade, com predomínio das torres para abrigar escritórios. Parece que nesse período grande parte das atividades saíram do centro em direção à avenida Paulista. Muitos problemas do centro se originaram nessa época. No momento em que a cidade aceitou o crescimento de novos centros, iniciou-se um processo de desvalorização do centro antigo. Esse fenômeno se vê em várias cidades latino-americanas.

Folha - É impossível ter uma cidade com muitas centralidades sem que o centro histórico perca valor?
Garay -
Os centros antigos têm uma estrutura de parcelamento do solo muito subdividida. Com isso, é difícil reunificar as parcelas. Nos últimos anos, as modernas modalidades de gestão levaram os edifícios de escritórios de grandes empresas a requerer plantas com grandes lajes livres. Então é difícil encontrar, nas antigas estruturas de parcelamento do solo, terrenos onde se permite construir plantas desse porte. É isso o que está fazendo os lançamentos imobiliários verticais procurarem outros centros.

Folha - Como atrair construções modernas sem destruir o patrimônio histórico?
Garay -
Em geral, as cidades têm um patrimônio arquitetônico no centro, mas também é certo que nem todas as construções têm valor. Há muita arquitetura de má qualidade. Por isso quase sempre o que se faz em políticas de preservação é uma catalogação, com vários níveis de proteção. O restante pede regras que permitam a construção de edifícios novos.

Folha - Mas demolir edifícios tem custo elevado, não?
Garay -
A pergunta é: o que vale mais, o edifício ou a localização? Onde o valor do solo é pouco representativo em relação ao da construção, algo em torno de 10%, em geral, predominam os edifícios. A tendência é deslocar os prédios para esses locais. Agora, quando ocorre o contrário, como em Madri [Espanha", onde o valor do terreno é igual ou superior ao do edifício, aí as pessoas priorizam a localização. O valor do solo passa a ser uma razão importante. A pergunta é se as políticas da cidade tendem a reafirmar e valorizar as áreas.

Folha - Em São Paulo, o centro é o local de maior infra-estrutura, mas o mercado segue apostando em áreas onde o terreno é mais barato.
Garay -
É o paradoxo de São Paulo, onde o processo de desvalorização é mais agudo, mais dinâmico do que o investimento público na qualificação do centro. No primeiro movimento, surgem os novos centros. Os compradores de imóveis vão atrás. No antigo centro, passam a predominar as pessoas de menor poder aquisitivo, comércios mais populares, pois os aluguéis vão ficando mais baratos. Com isso o conjunto passa a valer menos.

Folha - Buenos Aires enfrentou esse problema? Garay - Aqui, até a década de 70, foi demolida quase toda a estrutura existente, o que significou uma perda considerável de patrimônio arquitetônico, mas, por outro lado, garantiu que o centro se mantivesse vivo na oferta de produtos imobiliários contemporâneos. Em meados da década de 70, começaram a ser abertas novas torres de escritórios fora do centro. A tendência era deslocar o que havia no centro para bairros residenciais de alto padrão. Então, uma estratégia importante na década de 90 foi recuperar alguns terrenos que estavam próximos do centro para propor uma estrutura de parcelamento do solo que pudesse permitir prédios modernos.
Eu creio que essa é uma possibilidade que São Paulo também tem. Identificar terrenos grandes onde se possa fazer projetos de intervenção, terrenos de antigas fábricas, de estações. Essa política, porém, sempre tem de ser acompanhada de outras, como uma que compense a expulsão da população mais pobre. De maneira que a região venha a ter diversidade de uso e justiça social.

Folha - Que peso tem a produção cultural nesse processo?
Garay -
Em São Paulo, fiquei surpreso quando conheci as intervenções feitas na região da estação de trem [Luz". Mas por que essas medidas são tão ilhadas? É indispensável que pequenos empreendimentos, como livrarias e barzinhos, surjam em cadeia.

Folha - O problema é que o investimento em recuperação foi feito pelo Estado, que tem atuação limitada na requalificação da cidade...
Garay -
Para que esses investimentos não sejam diluídos, é necessário associar as iniciativas. A capacidade do poder público é muito pequena em relação a envergadura do problema. Eu creio que há aí também um desafio ao mercado imobiliário, que tem de encontrar quais são os produtos para um centro que atrai cada vez mais um grupo que não forma a família padrão. Os levantamentos censitários indicam uma população central cada vez mais jovem, de uma ou duas pessoas ocupando um imóvel, de homossexuais. Há toda uma reflexão para os arquitetos sobre as tipologias construtivas para transformar esses produtos atrativos para determinado setor.

Folha - O investimento do BID no centro de São Paulo é suficiente?
Garay -
Para o tamanho do problema, é pouco. Agora, se for pensado que isso é capaz de desencadear um processo, é diferente. Mas é preciso usar a inteligência para aplicar esse valor. Em São Paulo, há um debate importante sobre o perfil que terá esse novo centro. Há nesse centro o Mercado Municipal, maravilhoso, e, ao redor dele, todo um bairro de ruas comerciais especializadas. Essa é uma velha estrutura que pode ser valorizada. Mesmo onde há vendedores ambulantes não há empecilhos para que o espaço seja qualificado. São esses pontos os mais procurados pelos turistas.
O feito de valorizar o centro não deve nunca desprezar a cultura popular. Percebi que a administração de São Paulo tem sido muito criteriosa e avança na idéia de um projeto urbano que o valorize, além de ter sensibilidade para os problemas sociais.

Folha - Como a crise econômica pode influir nas cidades, principalmente no centro?
Garay -
A partir do momento que a pessoa não tem salário para comprar os produtos que necessita, tudo retrocede. Mas é também nas crises que aparece o melhor e o pior da cidade. Surgem novas organizações.
Em nosso caso, os clubes de troca são um exemplo. Contraditoriamente, a maioria deles está no centro de Buenos Aires. A maioria das manifestações sociais encontraram como cenário ideal o centro. Veja como no imaginário da cidade o centro segue tendo papel importante.



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