|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTE E REALIDADE
Dragão e santo trocam de papéis em Glauber Rocha
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Quando o candidato Ciro Gomes chama seu adversário José
Serra de "dragão da maldade",
como fez na semana passada, logo
nos vem à mente o filme "O Dragão da Maldade contra o Santo
Guerreiro", pelo qual o cineasta
Glauber Rocha ganhou em 1969 o
prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes.
Presume-se, no caso, que Ciro
esteja atribuindo a si próprio, implicitamente, o papel do "santo
guerreiro" (São Jorge) destinado
a derrotar o dragão.
Mas no universo de Glauber Rocha, que trabalha de modo muito
pessoal os mitos populares arcaicos transmitidos pela tradição
oral nordestina, esses papéis frequentemente se embaralham.
"O Dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro" é uma espécie
de continuação de "Deus o Diabo
na Terra do Sol", realizado pelo
cineasta cinco anos antes.
Em comum entre os dois filmes
há o personagem Antonio das
Mortes (Mauricio do Valle), matador de cangaceiros.
Em "Deus e o Diabo", a soldo
dos coronéis do sertão, Antonio
das Mortes extermina, primeiro,
um líder religioso, e, em seguida o
cangaceiro Corisco. Liquida, assim, a via mística e a violenta de
reação popular à miséria.
Representa, portanto, o "dragão
da maldade" (o latifúndio, o coronelismo), certo? Mais ou menos.
Ele próprio se julga um benfeitor,
ao livrar o povo da cegueira representada por Deus (o misticismo
alienante) ou pelo Diabo (a violência estéril do cangaço).
Corisco, por seu turno, arroga
para si o papel de aliado de São
Jorge contra os inimigos do povo.
Em "O Dragão da Maldade" a
situação se embaralha ainda mais.
Desta vez, num Nordeste já modernizado, mas ainda bárbaro,
Antonio das Mortes topa com um
novo cangaceiro, Coirana, que se
diz herdeiro de Lampião.
Mas passa para o lado dos insurrectos: o cangaceiro, um padre, um professor, um cego santo.
Nas palavras do próprio Glauber:
"O dragão é inicialmente Antonio
das Mortes, assim como São Jorge
é o cangaceiro. Depois, o verdadeiro dragão é o latifundiário, enquanto o santo guerreiro passa a
ser o professor quando pega as armas do cangaceiro e de Antonio
das Mortes".
O cineasta "queria dizer que tais
papéis sociais não são eternos e
imóveis, e que tais componentes
de agrupamentos sociais solidamente conservadores, ou reacionários, podem mudar e contribuir para mudar. Basta que entendam onde está o verdadeiro
dragão". Será que Ciro e Serra entenderam?
Texto Anterior: Na Escola: 'Ciro sempre quis ser presidente' Próximo Texto: Acre: TRE nega pressão para cassar governador Índice
|