São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 2002

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ECONOMIA POLÍTICA

Papa liberal, Milton Friedman acha "curioso" que economista defensor do mercado livre se una a candidato do PPS

Nobel estranha união Ciro-Scheinkman

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Milton Friedman, 90, ícone do pensamento econômico liberal contemporâneo, considera a união de um candidato com um "discurso de esquerda", como Ciro Gomes (PPS), com um economista que "defende a liberdade e a abertura dos mercados", como José Alexandre Scheinkman, algo "bastante curioso".
De acordo com Friedman, que recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1976, se elegerem um candidato à Presidência contrário aos interesses do mercado financeiro, os brasileiros deverão estar preparados a "pagar o preço de sua liberdade de escolha". O papa do monetarismo crê ainda que o Brasil -como a Argentina- não siga as regras que seu "envolvimento na economia internacional impõe".
Fervoroso defensor do mercado livre, Friedman não poupa críticas nem à maior potência da atual ordem econômica mundial, os EUA. Para ele, o protecionismo americano e as restrições que Washington aplica ao comércio internacional dificultam a promoção de comportamentos democráticos em países em desenvolvimento, como o Brasil. Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

Folha - Como a atual ordem econômica global afeta a democracia em países em desenvolvimento?
Milton Friedman -
Trata-se de uma questão cuja resposta é muito difícil. Em minha opinião, não há dúvida de que uma economia internacional mais livre e aberta tende a fortalecer a democracia, pois exige práticas e métodos mais transparentes dos políticos.
Mas, quando examinamos a ordem econômica global atual, observamos uma situação complexa. Por um lado, creio que a tendência de alguns países desenvolvidos de apresentar um comportamento menos protecionista tenda a incentivar o fortalecimento da democracia em países menos desenvolvidos, como o Brasil.
Por outro lado, essa tendência não existe em todos os Estados mais abastados. O aumento generalizado do comércio internacional e a expansão global dos mercados livres tendem a promover comportamentos democráticos. Todavia o protecionismo de algumas das maiores potências mundiais tem efeito oposto.

Folha - Mas, no Brasil, a cada pesquisa eleitoral em que o candidato preferido do mercado financeiro [José Serra, PSDB" não apresenta um bom desempenho, há agitação financeira. Estamos condicionados aos anseios do mercado?
Friedman -
Não se trata de o mercado concordar ou não com as escolhas da população. Na verdade, quando há agitação, o mercado financeiro apenas considera que as consequências das escolhas populares não serão favoráveis a seus interesses. Isso não significa, no entanto, que o povo brasileiro não possa eleger o candidato de sua preferência.
Os brasileiros podem escolher voluntariamente um sistema de governo que não é bom para o mercado, isso é totalmente legítimo. Por outro lado, obviamente, a eleição de um governo mais socialista ou coletivista será desfavorável para o comércio internacional. Contudo o povo brasileiro pode ter a intenção de pagar o preço de sua liberdade de escolha.

Folha - O governo brasileiro optou pela abertura dos mercados. Temos, porém, um déficit crônico de nossa balança de pagamentos. Somos fadados a essa situação?
Friedman -
O Brasil não tem déficits da balança de pagamentos porque abriu seus mercados. Isso ocorre porque o país importa capitais. Os créditos internacionais não estão escassos para o Brasil por causa de crises cíclicas, mas porque o modo como a economia brasileira é organizada é adverso à produtividade econômica.
A administração federal despende dinheiro demais, os governos estaduais gastam dinheiro demais, e há um enorme sistema de regulações e de controles. Não sou um especialista na situação econômica brasileira. Não posso, portanto, recomendar o que quer que seja aos brasileiros.
Entretanto, para países em desenvolvimento em geral, os aspectos determinantes da criação da riqueza são um sistema legal forte, a proteção do direito à propriedade e um baixo grau de influência do governo na sociedade.
O governo tem de envolver-se o menos possível na economia e deve garantir que os mercados sejam abertos. Mas, como disse anteriormente, o fortalecimento do livre comércio e das trocas financeiras internacionais é retardado pelo protecionismo aplicado pelas grandes potências globais.

Folha - O que o sr. descreveu parece o modelo aplicado pela Argentina na última década. Hoje observamos que o país paga um preço muito elevado por isso. Por quê?
Friedman -
A Argentina, como o Brasil, não tem seguido as regras que esse envolvimento na economia internacional impõe. Ambos têm uma participação governamental enorme na economia, o que obriga a administração a ter despesas demais. Os argentinos não foram capazes de diminuir a papel do governo em sua economia, o que está na base da crise que o país atravessa agora.
A questão não é precisar de capital estrangeiro, mas saber se o Brasil e a Argentina oferecem oportunidades a esse capital. Isso depende do sistema fiscal e de quais são as regras que regem a economia do país, o que não posso julgar por não ser um especialista em economia sul-americana.

Folha - Contudo os países asiáticos que tentaram seguir a cartilha do mercado financeiro internacional também atravessaram graves crises recentemente. Como o sr. analisa esse fato?
Friedman -
Essas regras funcionaram muito bem para eles durante muito tempo e continuam a fazê-lo atualmente. Tomemos a Coréia do Sul atual como exemplo. Trata-se de um país muito diferente daquele que existia há quinze anos, mais desenvolvido e sólido economicamente.
O mesmo vale para a maioria dos outros países do Sudeste Asiático. Eles tiveram uma crise em 1997, todavia quase tudo o que ocorreu nesses países, nos últimos 20 anos, é extremamente positivo. E a crise asiática só comprova minha tese, pois foi o resultado de políticas governamentais infelizes. Houve, na realidade, uma crise do sistema bancário, não uma crise econômica.
Devemos analisar as coisas a longo prazo para entender seu significado. Seria incorreto examinar o que acontece hoje em algum país sem levar em conta a evolução histórica dos fatos. O mundo atravessa uma fase negativa no que diz respeito à economia, mas houve grande crescimento no passado, o que deverá voltar a ocorrer no futuro. Isso vale para alguns países sul-americanos, como o Chile e o Brasil.

Folha - Que fatores são indispensáveis para que haja desenvolvimento econômico em Estados como o Brasil?
Friedman -
Os principais fatores são o respeito das leis, a proteção da propriedade privada e as liberdades individual e de criação, que, se existissem, permitiriam que as pessoas trabalhassem onde quisessem ou criassem os projetos que desejassem, podendo, assim, negociar com países estrangeiros.
Além disso, há a necessidade de liberalizar todos os mercados, seja de trabalho, seja financeiro etc. É necessário ter mercados abertos e oportunidades para que as pessoas usem seus recursos como quiserem contanto que isso não interfira na ação de terceiros.

Folha - Como a Alca [Área de Livre Comércio das Américas" se insere nesse quadro?
Friedman -
Creio que ela possa vir a existir, pois há uma tendência crescente de fortalecimento de acordos regionais. De um ponto de vista mais amplo, porém, a América Latina e o mundo todo teriam melhores oportunidades se o livre comércio fosse universal, não regional. As experiências regionais ainda estão longe do livre comércio, o que seria muito mais benéfico para o planeta.

Folha - Sim, porém há uma visão generalizada de que esses acordos acabam favorecendo sobretudo os Estados mais sólidos economicamente. O que o sr. pensa disso?
Friedman -
Não acredito nisso. Se o livre comércio existir realmente, os países menos desenvolvidos serão os mais beneficiados. O problema é que há muita conversa sobre livre comércio, mas países poderosos, como os EUA, continuam a impor barreiras a ele. Há proteção ao aço, à indústria farmacêutica, às tecelagens, o que emperra o livre comércio.
Se o comércio internacional for realmente livre e se as grandes potências não impuserem restrições a ele, os Estados menos desenvolvidos serão os que mais lucrarão com isso. Todavia, como isso ainda não existe, acordos regionais de livre comércio são necessários. Para os países latino-americanos, a melhor coisa seria que, gradualmente, eles se inserissem no Nafta. Ou, talvez, um acordo de livre comércio na América Latina fosse ainda mais benéfico no início.

Folha - O sr. conhece o economista José Alexandre Scheinkman [que, desde a semana passada, colabora na concepção do programa de Ciro Gomes, PPS"?
Friedman -
Sim, eu o conheço. Ele foi meu colega na Universidade de Chicago. À época, ele era principalmente um economista ligado ao estudo matemático da economia. Infelizmente, desde então, não tenho acompanhado de perto seu trabalho. Só sei que ele está se envolvendo na campanha eleitoral brasileira.
Li, nos jornais americanos, que o candidato ao qual José Scheinkman está ligado tem um discurso de esquerda, o que me pareceu bastante curioso, pois ele é um economista de formação liberal e defende a liberdade e a abertura dos mercados. Trata-se, indubitavelmente, de uma combinação bastante curiosa. Tenho certeza de que Scheinkman defende a liberalização e a abertura dos mercados, o que não parece agradar a seu candidato a presidente.



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