|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ECONOMIA POLÍTICA
Papa liberal, Milton Friedman acha "curioso" que economista defensor do mercado livre se una a candidato do PPS
Nobel estranha união Ciro-Scheinkman
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Milton Friedman, 90, ícone do pensamento
econômico liberal contemporâneo, considera
a união de um candidato com um "discurso de
esquerda", como Ciro Gomes (PPS), com um
economista que "defende a liberdade e a abertura dos mercados", como José Alexandre
Scheinkman, algo "bastante curioso".
De acordo com Friedman, que recebeu o
Prêmio Nobel de Economia em 1976, se elegerem um candidato à Presidência contrário aos
interesses do mercado financeiro, os brasileiros deverão estar preparados a "pagar o preço
de sua liberdade de escolha". O papa do monetarismo crê ainda que o Brasil -como a Argentina- não siga as regras que seu "envolvimento na economia internacional impõe".
Fervoroso defensor do mercado livre,
Friedman não poupa críticas nem à maior potência da atual ordem econômica mundial, os
EUA. Para ele, o protecionismo americano e as
restrições que Washington aplica ao comércio
internacional dificultam a promoção de comportamentos democráticos em países em desenvolvimento, como o Brasil. Leia a seguir
trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
Folha - Como a atual ordem econômica global afeta a democracia
em países em desenvolvimento?
Milton Friedman - Trata-se de
uma questão cuja resposta é muito difícil. Em minha opinião, não
há dúvida de que uma economia
internacional mais livre e aberta
tende a fortalecer a democracia,
pois exige práticas e métodos
mais transparentes dos políticos.
Mas, quando examinamos a ordem econômica global atual, observamos uma situação complexa. Por um lado, creio que a tendência de alguns países desenvolvidos de apresentar um comportamento menos protecionista
tenda a incentivar o fortalecimento da democracia em países menos desenvolvidos, como o Brasil.
Por outro lado, essa tendência
não existe em todos os Estados
mais abastados. O aumento generalizado do comércio internacional e a expansão global dos mercados livres tendem a promover
comportamentos democráticos.
Todavia o protecionismo de algumas das maiores potências mundiais tem efeito oposto.
Folha - Mas, no Brasil, a cada pesquisa eleitoral em que o candidato
preferido do mercado financeiro
[José Serra, PSDB" não apresenta
um bom desempenho, há agitação
financeira. Estamos condicionados
aos anseios do mercado?
Friedman - Não se trata de o
mercado concordar ou não com
as escolhas da população. Na verdade, quando há agitação, o mercado financeiro apenas considera
que as consequências das escolhas populares não serão favoráveis a seus interesses. Isso não significa, no entanto, que o povo
brasileiro não possa eleger o candidato de sua preferência.
Os brasileiros podem escolher
voluntariamente um sistema de
governo que não é bom para o
mercado, isso é totalmente legítimo. Por outro lado, obviamente, a
eleição de um governo mais socialista ou coletivista será desfavorável para o comércio internacional. Contudo o povo brasileiro
pode ter a intenção de pagar o
preço de sua liberdade de escolha.
Folha - O governo brasileiro optou pela abertura dos mercados.
Temos, porém, um déficit crônico
de nossa balança de pagamentos.
Somos fadados a essa situação?
Friedman - O Brasil não tem déficits da balança de pagamentos
porque abriu seus mercados. Isso
ocorre porque o país importa capitais. Os créditos internacionais
não estão escassos para o Brasil
por causa de crises cíclicas, mas
porque o modo como a economia
brasileira é organizada é adverso à
produtividade econômica.
A administração federal despende dinheiro demais, os governos estaduais gastam dinheiro demais, e há um enorme sistema de
regulações e de controles. Não
sou um especialista na situação
econômica brasileira. Não posso,
portanto, recomendar o que quer
que seja aos brasileiros.
Entretanto, para países em desenvolvimento em geral, os aspectos determinantes da criação
da riqueza são um sistema legal
forte, a proteção do direito à propriedade e um baixo grau de influência do governo na sociedade.
O governo tem de envolver-se o
menos possível na economia e deve garantir que os mercados sejam abertos. Mas, como disse anteriormente, o fortalecimento do
livre comércio e das trocas financeiras internacionais é retardado
pelo protecionismo aplicado pelas grandes potências globais.
Folha - O que o sr. descreveu parece o modelo aplicado pela Argentina na última década. Hoje observamos que o país paga um preço
muito elevado por isso. Por quê?
Friedman - A Argentina, como o
Brasil, não tem seguido as regras
que esse envolvimento na economia internacional impõe. Ambos
têm uma participação governamental enorme na economia, o
que obriga a administração a ter
despesas demais. Os argentinos
não foram capazes de diminuir a
papel do governo em sua economia, o que está na base da crise
que o país atravessa agora.
A questão não é precisar de capital estrangeiro, mas saber se o
Brasil e a Argentina oferecem
oportunidades a esse capital. Isso
depende do sistema fiscal e de
quais são as regras que regem a
economia do país, o que não posso julgar por não ser um especialista em economia sul-americana.
Folha - Contudo os países asiáticos que tentaram seguir a cartilha
do mercado financeiro internacional também atravessaram graves
crises recentemente. Como o sr.
analisa esse fato?
Friedman - Essas regras funcionaram muito bem para eles durante muito tempo e continuam a
fazê-lo atualmente. Tomemos a
Coréia do Sul atual como exemplo. Trata-se de um país muito diferente daquele que existia há
quinze anos, mais desenvolvido e
sólido economicamente.
O mesmo vale para a maioria
dos outros países do Sudeste
Asiático. Eles tiveram uma crise
em 1997, todavia quase tudo o que
ocorreu nesses países, nos últimos 20 anos, é extremamente positivo. E a crise asiática só comprova minha tese, pois foi o resultado de políticas governamentais
infelizes. Houve, na realidade,
uma crise do sistema bancário,
não uma crise econômica.
Devemos analisar as coisas a
longo prazo para entender seu
significado. Seria incorreto examinar o que acontece hoje em algum país sem levar em conta a
evolução histórica dos fatos. O
mundo atravessa uma fase negativa no que diz respeito à economia, mas houve grande crescimento no passado, o que deverá
voltar a ocorrer no futuro. Isso vale para alguns países sul-americanos, como o Chile e o Brasil.
Folha - Que fatores são indispensáveis para que haja desenvolvimento econômico em Estados como o Brasil?
Friedman - Os principais fatores
são o respeito das leis, a proteção
da propriedade privada e as liberdades individual e de criação, que,
se existissem, permitiriam que as
pessoas trabalhassem onde quisessem ou criassem os projetos
que desejassem, podendo, assim,
negociar com países estrangeiros.
Além disso, há a necessidade de
liberalizar todos os mercados, seja
de trabalho, seja financeiro etc. É
necessário ter mercados abertos e
oportunidades para que as pessoas usem seus recursos como
quiserem contanto que isso não
interfira na ação de terceiros.
Folha - Como a Alca [Área de Livre
Comércio das Américas" se insere
nesse quadro?
Friedman - Creio que ela possa
vir a existir, pois há uma tendência crescente de fortalecimento de
acordos regionais. De um ponto
de vista mais amplo, porém, a
América Latina e o mundo todo
teriam melhores oportunidades
se o livre comércio fosse universal, não regional. As experiências
regionais ainda estão longe do livre comércio, o que seria muito
mais benéfico para o planeta.
Folha - Sim, porém há uma visão
generalizada de que esses acordos
acabam favorecendo sobretudo os
Estados mais sólidos economicamente. O que o sr. pensa disso?
Friedman - Não acredito nisso.
Se o livre comércio existir realmente, os países menos desenvolvidos serão os mais beneficiados.
O problema é que há muita conversa sobre livre comércio, mas
países poderosos, como os EUA,
continuam a impor barreiras a
ele. Há proteção ao aço, à indústria farmacêutica, às tecelagens, o
que emperra o livre comércio.
Se o comércio internacional for
realmente livre e se as grandes potências não impuserem restrições
a ele, os Estados menos desenvolvidos serão os que mais lucrarão
com isso. Todavia, como isso ainda não existe, acordos regionais
de livre comércio são necessários.
Para os países latino-americanos,
a melhor coisa seria que, gradualmente, eles se inserissem no Nafta. Ou, talvez, um acordo de livre
comércio na América Latina fosse
ainda mais benéfico no início.
Folha - O sr. conhece o economista José Alexandre Scheinkman
[que, desde a semana passada, colabora na concepção do programa
de Ciro Gomes, PPS"?
Friedman - Sim, eu o conheço.
Ele foi meu colega na Universidade de Chicago. À época, ele era
principalmente um economista
ligado ao estudo matemático da
economia. Infelizmente, desde
então, não tenho acompanhado
de perto seu trabalho. Só sei que
ele está se envolvendo na campanha eleitoral brasileira.
Li, nos jornais americanos, que
o candidato ao qual José Scheinkman está ligado tem um discurso
de esquerda, o que me pareceu
bastante curioso, pois ele é um
economista de formação liberal e
defende a liberdade e a abertura
dos mercados. Trata-se, indubitavelmente, de uma combinação
bastante curiosa. Tenho certeza
de que Scheinkman defende a liberalização e a abertura dos mercados, o que não parece agradar a
seu candidato a presidente.
Texto Anterior: Petista recorre da decisão de tribunal Próximo Texto: Friedman Índice
|