São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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JANIO DE FREITAS

Desculpas indesculpáveis

Ao voltar de Nova York, Lula tinha marcada com antecedência uma reunião ministerial. À última hora, substituiu-a por uma entrevista a pequeno grupo de jornalistas de rádio, por seleção do próprio Planalto. Relegar despachos ministeriais e espremer audiências sobre temas de governo estão entre as lições aprendidas de Fernando Henrique por Lula. Mas o cancelamento e a entrevista evidenciaram os temores de Lula e sua assessoria, dada a reação ao uso de ato oficial, já por si injustificado, de propaganda ilegal do presidente da República para Marta Suplicy. O jornalismo governista diria, no dia seguinte à entrevista, que o (quase) pedido de desculpas ali feito não estava previsto, foi ato de espontânea sinceridade presidencial. Pois sim.
A oportunidade montada deu os seus resultados: as meias desculpas receberam o pretendido destaque na mídia, embora não o perdão do Ministério Público e do juiz José Joaquim dos Santos, que notificou Lula e Marta por violação da lei eleitoral. Seria esta a parte frustrada do plano? José Dirceu, lá de Porto Alegre, logo avisou que não: "A Justiça vai arquivar isso". Não esclareceu se a afirmação decorre da arrogância de poder, que nunca lhe falta; das sondagens já feitas ou da certeza de que continuarão eficientes as impróprias relações de certos ministros do Judiciário com a Presidência e adjacências.
Não só de menores e maiores deslizes fez-se, no entanto, o episódio. Deixou também uma lembrança positiva, neste comentário de Lula aos seus entrevistadores, todos profissionais de jornalismo: "Eu pensei que vocês iam entrar em temas polêmicos. Vocês não entraram nas coisas mais polêmicas que deram briga esses dias. (...) Espero que vocês tirem lição e na próxima sejam um pouco mais duros com o presidente". Lição de jornalismo ou lição de moral? Pode-se também, é meu velho ponto de vista, considerá-las indissociáveis.
Enquanto Lula concedia a não-entrevista com suas meias desculpas, a Folha circulava com um artigo, em imprevisível lugar (caderno Equilíbrio), do jornalista norte-americano Michael Kepp. Radicado em São Paulo há mais de 20 anos, Kepp observou que, enquanto 56 entre 63 críticos de cinema relevantes elogiaram nos Estados Unidos o filme "Fahrenheit 11 de Setembro", no Brasil a maioria dos artigos desancou-o com incomum ferocidade adjetiva, inclusive para o diretor Michael Moore. A repulsa, aqui, ao documentário sobre/contra Bush, já ganhador da Palma de Ouro em Cannes e esperável vencedor do Oscar de melhor documentário, suscitou esta percepção de Kepp: "Fahrenheit também faz parte de outra tradição pouco difundida no Brasil, o estilo agressivo de entrevistar que parece dizer "te peguei"". Estilo que, acrescento, é comum na Europa e nos Estados Unidos como parte da natureza mesma do jornalismo. Uma ressalva: por delicadeza, Kepp diz que a entrevista para valer é "pouco difundida" por aqui, mas, na realidade, é quase inexistente e, quando ocorre, quase sempre provém mais de inimizades e partidarismos que de jornalismo.
Aí estão -na ilegalidade eleitoral de Lula, na atitude que observou e criticou em seus entrevistadores, na referência de José Dirceu avessa à liberdade autônoma do Judiciário, nos artigos notados por Kepp- vícios que os 21 anos da ditadura transformaram em costumes. Não se tornaram redivivos agora, por culpa do governo Lula, simplesmente têm sobrevivido sem maior restrição, alguns, e outros até se fortalecido (como a continuada degradação do Congresso, não mais pela força explícita, mas pela aquisição de votos tornada norma por Fernando Henrique e adotada por Lula).
Aguarda-se nova entrevista de Lula, na qual peça desculpas -espontaneamente, não porque haja alguma pergunta jornalística- pela interessante operação que está usando na propaganda paga do governo federal para fazer propaganda de Marta. O nome de tal prática é simples e conhecido: corrupção.


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