São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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ENTREVISTA

Para José Arthur Giannotti, narcisismo petista paralisa governo; vitória de Serra em São Paulo destravaria a política

Se PT perde, democracia ganha, diz filósofo

Renato Stockler/Folha Imagem
O filósofo José Arthur Giannotti, que é amigo há mais de 50 anos de Fernando Henrique Cardoso, durante entrevista em sua casa


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

"É fundamental para a democracia que o PT saia enfraquecido", declara o filósofo José Arthur Giannotti, 73, sobre as eleições do domingo que vem, ao declarar seu apoio ao candidato tucano à prefeitura paulistana, José Serra.
Importante para a democracia, ele diz, porque o PT no poder federal paralisa as ações de governo e a política, ao preservar para si a imagem narcísica, nunca realizada, do antigo PT, revolucionário, transformador.
Esse narcisismo impede mudanças e questionamentos das decisões do governo, mesmo as "neoliberais", ele diz. ""Estamos nos acertando, nos ajustando, mas no momento exato nós voltamos com as nossas políticas". É o milênio. Jesus Cristo não vem agora; no ano mil ele vem."


Como o governo não tem nenhum rumo, está minando sua relação com o legislativo. Tudo ficou meio parado


Afirmando que a vitória de Serra obrigaria o governo "a pensar qual é o rumo que irá tomar" e salvaria o país dessa crise da prática política, o filósofo, amigo há mais de 50 anos de Fernando Henrique Cardoso, alerta sobre o perigo de que a própria desorganização interna do PSDB termine por levá-lo para a direita.
A seguir, trechos da entrevista.
 

Folha - Qual é o perfil psicológico do governo Lula?
José Arthur Giannotti -
Eu diria que ele é muito mais narcísico do que esquizofrênico. Na medida em que ele de tal forma se encanta com sua imagem projetada no lago que corre o risco de se afogar.
É narcísico porque, como todo mundo sabe, as políticas hoje têm como seu foco o centro. A não ser para os apocalípticos, a destruição do capitalismo, e para os dinossauros, a continuidade de uma política de livre câmbio e de mercado. Nós temos que regular o capital. Fazer isso significa realizar políticas reformistas. O PT percebeu isso claramente, veio para o centro e está disputando com o PSDB essa hegemonia.
Só que o narcisismo é um impedimento. Porque encobre a permanência de um ideal revolucionário que, não tendo condições [de se realizar], fica permanentemente na base da fantasia.

Folha - Que imagem é essa que eles vêem no espelho?
Giannotti -
É a imagem deles mesmos como revolucionários. Dentro da democracia, com a qual têm pouco compromisso, se vêem como no subterrâneo, fazendo uma revolução.
O Lula diz a todo momento que a eleição dele é um evento na história da humanidade. Trata-se de um componente messiânico, mas não só. As revoluções dão nome e criam novos calendários. Como tem que começar tudo de novo, o Bolsa-Escola vira Bolsa-Família, o brizolão vira CEU.
Você tem esse ato de nomeação, de achar que você está iniciando uma nova era. Isso é pura fantasia, já que a parte real do governo, que é a parte econômica, está simplesmente seguindo a política anterior neoliberal. Com restrições -porque aquela oposição que existia no governo FHC, entre os monetaristas e os desenvolvimentistas, e o Fernando Henrique decidiu claramente a favor dos monetaristas, fez com que pelo menos você tivesse certa dinâmica na pressão em relação à economia. Havia uma tensão e um questionamento. Hoje não.

Folha - Esse "narcisismo" impede esse questionamento?
Giannotti -
Sim. No fundo, uma figura messiânica vai dizer: "Bom, estão fazendo isso, estamos nos acertando, nos ajustando, mas no momento exato nós voltamos com as nossas políticas". É o milênio. Jesus Cristo não vem agora; no ano mil ele vem. A política é bem descrita numa linguagem religiosa. Eles esperam o milênio.
Esse tipo de milenarismo está levando a uma desestruturação do próprio governo. Você não tem focos precisos de decisão. A área econômica decide de um lado, os outros ministérios decidem mais ou menos cada um à sua maneira, e não há uma integração da ação governamental. O Executivo se torna pouco eficiente, fora a área econômica.


Ou o PT é jogado contra a parede, de tal forma que seja obrigado a repensar o seu narcisismo, ou entramos numa anomia


Do lado do legislativo, tivemos a tradicional busca da governabilidade. Só que, ao contrário do governo anterior, em vez de você fazer uma aliança que definisse os parâmetros dessa governabilidade, você fez uma aliança posterior. Que compra os "300 picaretas" e desestrutura partidos.
Sendo posterior, os movimentos são ad hoc, e você [o governo] não sabe como é que está operando. A ponto de ser necessário querer rachar o PFL e trazer a parte mais clientelista para o governo.
Há uma desestruturação do sistema político. Como o governo não tem nenhum rumo, a não ser a sobrevivência no poder, ele está minando sua relação com o legislativo. Tudo ficou meio parado. Não podendo decidir internamente, ele joga para o legislativo resolver a questão. O legislativo, que não é tonto, joga de volta para o governo, que é obrigado então a emitir medidas provisórias. Há uma desestruturação em relação ao jogo dos Poderes.

Folha - Há relação entre essa paralisação do governo e do legislativo e aquela imagem narcísica de que o sr. falava?
Giannotti -
A imagem de que falo é justamente uma maneira de resolver, num mundo de imagens, essa luta fratricida que eles não podem resolver na realidade. Essa luta fratricida de fogo amigo, entre uma forma de governo patrimonialista, e outra reguladora, é resolvida por meio da idéia de que todos estão contribuindo "para fazer uma enorme revolução no país, que estamos renomeando a nossa história".
É preciso entender o que é milênio. É o retorno do PT às suas origens, à sua vocação socialista, à sua vocação de mudar o mundo, e para isso é preciso reforçar o Estado, com o risco de instalar um governo autoritário.
Há a idéia de que uma revolução social poderia substituir as forças políticas. O milenarismo está ligado justamente a essa idéia de que você não precisaria mais fazer política. Então o que você faz? Toma o aparelho de Estado, o que estão fazendo de maneira superlativa. E qualquer crítica a esse processo é tomada como traição. A imprensa quando critica além do necessário está traindo, o Ministério Público está traindo, assim por diante.
Você não pensa mais o adversário como aquele que colabora para os rumos do país, na medida em que traz um outro ponto de vista para a discussão e para a prática. Se imaginamos que os movimentos sociais vão acuar a política, se o próprio governo acredita que é o representante deles, que tem a lógica dos movimentos sociais, e não a da política, a idéia é: a democracia burguesa é instrumento para que possamos realizar a liberdade social, a igualdade.

Folha - O sr. diz que o governo não reconhece o adversário e não permite o jogo político. Mas vamos falar do adversário: o PSDB traz alguma coisa? Ele não está perdido também?
Giannotti -
Está. E na medida em que o PT vem e agarra as bandeiras do PSDB, ele fica como barata tonta. O PSDB sabe que não pode ser engolido pelo PT, mas não tem bandeiras precisas. Mais ainda: enquanto o PT se organizou como um partido altamente empresarial, como um partido americano, o PSDB ficou ainda na base de um partido vinculado à ação dos governadores. Então, ou o PSDB se torna um partido à americana ou perde para o PT por muitos anos.
Não estou dizendo que o PSDB é a solução. Estou dizendo que há uma reforma do capitalismo, que pode ter dois eixos: por meio dos fundos públicos ou dos ordenamentos jurídicos etc. A política hoje, portanto, parte do centro.
A fonte da política contemporânea é o centro. O PT veio, organizou, mas conserva o imaginário revolucionário. O PSDB continua dependendo de forças que vêm dos governos estaduais. Com um perigo evidente: de ir para a direita. Tanto assim que, se me lembro bem, o candidato de Geraldo Alckmin para a Prefeitura de São Paulo era um secretário de Segurança. Com um discurso claramente de direita. Existe essa ambigüidade também no PSDB. Só que, como ele já não está no poder, não foi obrigado a encontrar a unidade -que o PT encontrou no imaginário e no narcisismo.

Folha - O sr. descreve uma crise da prática política...
Giannotti -
...podendo vir acompanhada de uma espécie de euforia política graças a um crescimento que não é sustentável. Isso é que é o mais perigoso. Se começarmos a ter uma folga econômica, e for possível uma politização desses ganhos, teremos a reeleição do Lula. Com isso, continuaremos a ter o mesmo tipo de política. Que significa a desestruturação de todo o sistema político brasileiro.

Folha - Então, quando Marta Suplicy diz que a vitória do Serra poderia representar uma crise política, o sr. defende o contrário?
Giannotti -
Sim. É fundamental que o PT saia enfraquecido dessas eleições. Não porque somos aliados do Serra -isso também seria um motivo. Como sabíamos desde o início, a mudança viria mais do Serra que do Lula. Ainda acho que a mudança virá mais dele que da Marta.
Ou o PT é jogado contra a parede, de tal forma que seja obrigado a repensar o seu narcisismo imaginário, e portanto seja obrigado a pensar qual é o rumo que irá tomar, ou senão, entramos numa anomia.
É fundamental para a democracia que o PT saia enfraquecido. E mais ainda: que se coloque o Lula entre o fogo e a caldeirinha. Ou faz uma reforma ministerial e abandona esse tipo de política sindical que levou para o governo, ou nós entramos numa situação em que não sabemos para onde vamos.


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