São Paulo, sábado, 26 de outubro de 2002

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INCONSCIENTE ELEITORAL

O novo, o povo, os neobobos

MARCELO COELHO

Foram muitas as frases risíveis pronunciadas por FHC ao longo dos últimos oito anos. Uma das mais recentes foi pronunciada anteontem, a respeito dos possíveis riscos da transição política.
"Como o brasileiro é um povo novo, não vai ficar com medo do que é novo", disse o presidente. Talvez julgando que a frase tinha um excessivo sabor lulista, Fernando Henrique acrescentou logo em seguida, e com mais inspiração: "Nós iremos vencer, vença quem vencer".
Tudo bem. Não só a democracia, como também Fernando Henrique vence ao zelar por uma boa passagem do cargo. Com certa boa vontade, posso entender essa frase. Mas a outra, a anterior, acho bem menos clara: "Como o brasileiro é um povo novo, não tem medo do que é novo". Como assim?
Em tese, FHC estaria dizendo que, sendo a população jovem em sua maioria, não colam muito as advertências em torno de um crescimento da inflação, de uma desorganização financeira ou de tumulto político, que poderiam acontecer no governo Lula. Mas a volta da inflação (Sarney), a desorganização financeira (Rússia, Argentina, Brasil do plano Collor) ou o tumulto político (Jango, golpe militar) são justamente coisas passadas, não "novas".
Pegando a frase pela outra ponta. A eleição de Lula é um fato historicamente novo para o país. Nunca houve um presidente brasileiro saído do movimento sindical. Haveria motivo para ter medo disso? Não, diz Fernando Henrique. Talvez um povo velho tivesse medo. Mas "um povo novo não tem medo do que é novo".
Só que o raciocínio também fica esquisito desse ponto de vista. Se o povo, que é novo, não tem medo dessa novidade, por que esperou tanto tempo (cinco séculos, cem anos, ou pelo menos quatro eleições) antes de experimentá-la?
Provavelmente a idéia de que o povo brasileiro é novo não tem tanto a ver com a pouca idade biológica da maioria da população; talvez tenha um pouco mais a ver com a idade "histórica", no sentido de que é relativamente recente a instauração de uma democracia plena e representativa no país.
Desconfio que no fundo da frase há um outro pensamento. Quando FHC diz que o "povo é novo", talvez ele esteja tomando contato, só agora, com aquilo que durante os últimos oito anos teimou em ignorar. Antidemagógico por temperamento, convicção e asco, Fernando Henrique voltou seu governo muito mais para a obtenção de prestígio internacional do que para a exteriorização de grande solidariedade para com as classes populares. Ainda no primeiro mandato, FHC dava alegremente como imutável a existência de uns 40 milhões de "excluídos", com os quais não haveria nada a fazer, mesmo na hipótese (que não se confirmou) de grande crescimento econômico.
Não é à toa que José Simão sempre brincou com o lado "Maria Antonieta" do PSDB. Se não há pão, que comam brioches. Na frase de Fernando Henrique, isso de alguma forma se combina com a famosa brincadeira de Brecht durante o stalinismo. Brecht dizia que se não é possível trocar o governo, que ao menos se troque de povo.
O governo, aqui, vai sendo trocado. Começa um governo novo. Na mente cardosiana, talvez isso seja inadmissível. Como assim, um governo novo? Pior ainda, um governo daqueles que eu chamei de neobobos... Ah, é que o povo também é novo. Trocaram de povo: só pode ser isso. O povo que eu conheço não desaprova, que eu saiba, a quantidade de coisas que deixei de fazer por ele.


MARCELO COELHO, colunista da Folha, escreve aos sábados



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