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INCONSCIENTE ELEITORAL
O novo, o povo, os neobobos
MARCELO COELHO
Foram muitas as frases risíveis
pronunciadas por FHC ao longo dos últimos oito anos. Uma das
mais recentes foi pronunciada
anteontem, a respeito dos possíveis riscos da transição política.
"Como o brasileiro é um povo
novo, não vai ficar com medo do
que é novo", disse o presidente.
Talvez julgando que a frase tinha
um excessivo sabor lulista, Fernando Henrique acrescentou logo
em seguida, e com mais inspiração: "Nós iremos vencer, vença
quem vencer".
Tudo bem. Não só a democracia, como também Fernando
Henrique vence ao zelar por uma
boa passagem do cargo. Com certa boa vontade, posso entender
essa frase. Mas a outra, a anterior, acho bem menos clara: "Como o brasileiro é um povo novo,
não tem medo do que é novo".
Como assim?
Em tese, FHC estaria dizendo
que, sendo a população jovem em
sua maioria, não colam muito as
advertências em torno de um
crescimento da inflação, de uma
desorganização financeira ou de
tumulto político, que poderiam
acontecer no governo Lula. Mas a
volta da inflação (Sarney), a desorganização financeira (Rússia,
Argentina, Brasil do plano Collor) ou o tumulto político (Jango,
golpe militar) são justamente coisas passadas, não "novas".
Pegando a frase pela outra ponta. A eleição de Lula é um fato
historicamente novo para o país.
Nunca houve um presidente brasileiro saído do movimento sindical. Haveria motivo para ter medo disso? Não, diz Fernando Henrique. Talvez um povo velho tivesse medo. Mas "um povo novo não
tem medo do que é novo".
Só que o raciocínio também fica
esquisito desse ponto de vista. Se o
povo, que é novo, não tem medo
dessa novidade, por que esperou
tanto tempo (cinco séculos, cem
anos, ou pelo menos quatro eleições) antes de experimentá-la?
Provavelmente a idéia de que o
povo brasileiro é novo não tem
tanto a ver com a pouca idade
biológica da maioria da população; talvez tenha um pouco mais
a ver com a idade "histórica", no
sentido de que é relativamente recente a instauração de uma democracia plena e representativa
no país.
Desconfio que no fundo da frase
há um outro pensamento. Quando FHC diz que o "povo é novo",
talvez ele esteja tomando contato,
só agora, com aquilo que durante
os últimos oito anos teimou em
ignorar. Antidemagógico por
temperamento, convicção e asco,
Fernando Henrique voltou seu
governo muito mais para a obtenção de prestígio internacional
do que para a exteriorização de
grande solidariedade para com as
classes populares. Ainda no primeiro mandato, FHC dava alegremente como imutável a existência de uns 40 milhões de "excluídos", com os quais não haveria nada a fazer, mesmo na hipótese (que não se confirmou) de
grande crescimento econômico.
Não é à toa que José Simão sempre brincou com o lado "Maria
Antonieta" do PSDB. Se não há
pão, que comam brioches. Na frase de Fernando Henrique, isso de
alguma forma se combina com a
famosa brincadeira de Brecht durante o stalinismo. Brecht dizia
que se não é possível trocar o governo, que ao menos se troque de
povo.
O governo, aqui, vai sendo trocado. Começa um governo novo.
Na mente cardosiana, talvez isso
seja inadmissível. Como assim,
um governo novo? Pior ainda, um
governo daqueles que eu chamei
de neobobos... Ah, é que o povo
também é novo. Trocaram de povo: só pode ser isso. O povo que eu
conheço não desaprova, que eu
saiba, a quantidade de coisas que
deixei de fazer por ele.
MARCELO COELHO, colunista da Folha,
escreve aos sábados
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