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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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JANIO DE FREITAS

O poder da incoerência

O governo está absolutamente confuso, nos dois sentidos que a expressão pode ter. Ninguém se entende, à falta de diretrizes, ainda que simplórias. E nos últimos dias o comando do governo experimentou uma rara sequência de derrotas políticas e éticas, mais de uma a cada dia, como se mãos misteriosas as encadeassem para lembrar, em particular ao próprio Luiz Inácio Lula da Silva, que o poder se exerce com os pés no chão sólido da realidade.
É a esse estado de coisas que se deve atribuir a repentina ida do ministro Antonio Palocci Filho para apresentar, em rede nacional, a "vitória sobre a inflação" programada por Duda Mendonça. Escolha muito acertada, porque a política econômica de Palocci foi apontada como causa principal de uma das pancadas da semana -a forte queda de Lula na pesquisa CNI/Sensus.
Escolha certa do figurante, mas a incoerência da idéia só fez engordar a confusão. Palocci teve que bradar o seu grito do Ipiranga -"Vencemos esta batalha! A inflação está controlada!"- apenas 30 horas depois, nem dois dias, de proclamada pela sua política econômica a permanência da mais alta taxa de juros reais do mundo. Dada como necessária para vencer a inflação que está vencida.
Como a coerência do governo está em ser incoerente, é por aí que se deve entender também o complemento da vitória anunciada, segundo o qual, já que os pesquisados reclamaram da estagnação econômica, "o país está pronto agora para voltar a crescer". Duda Mendonça já foi melhor. Antonio Palocci talvez não. Pois o ministro que anuncia a volta à política de crescimento passou a semana batalhando para que o Congresso mantenha, no Orçamento proposto pelo governo para 2004, os cortes de todos os investimentos governamentais e até de gastos exigidos pela Constituição, como os destinados à saúde. A política econômica pede ao Congresso a aprovação de um Orçamento feito para manter a estagnação.
Ou seja, a política verdadeira do governo, que não passa pela maquiagem ilusionista de marqueteiro nenhum, está destinada a reproduzir estas manchetes que apontaram algumas das derrotas e tonturas do governo nos últimos dias: "Fábrica brasileiras fecham mais vagas" [no mundo] / "Juro alto fez dívida pública bater recorde e chegar a R$ 707,7 bilhões"/ "SP chega à marca recorde de 2,03 milhões sem emprego"/ "Taxa de desocupação sobe para 20,6%, índice mais elevado desde 85"/ "IBGE: renda do trabalhador [não só operário] despenca 14,6%" / "Renda familiar cai e mais pessoas vão procurar emprego"/ "Lula gasta com Saúde menos do que manda a lei", e por aí vai.
Mas não é só nas suas exibições para a mídia que o governo divulga seu estado de confusão e a incoerência como regra. Na semana anterior àquelas manchetes, Antonio Palocci prestou demorado depoimento no Senado. Eis dois dos trechos, sobre aumento de impostos, representativos do todo:
"Quando dizemos que não vamos aumentar a carga tributária, isso não é um discurso. Não é retórica".
Outro momento palocciano: "Não digo que não haverá aumento de carga. Ninguém pode dizer isso."
Correção em tempo: ficou dito, lá em cima, que o Orçamento preparado pelo governo corta todos os gastos. Todos, não. Os gastos da Presidência da República ficam a salvo: são tão liberais, ou neoliberais, que, segundo a comparação de Mônica Bergamo na Folha, se tornaram maiores até do que ao tempo de Fernando Henrique, o faustoso. Rica Presidência quer dizer pobre país.


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