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ELIO GASPARI
O Brasil das cabeças desarrumadas
O resultado do referendo
fez um bem ao país. Instaurou o império das cabeças
desarrumadas, e o Brasil precisa
delas. Uma pessoa de cabeça desarrumada é assim: defende a
pena de morte e o ensino gratuito nas universidades públicas. É
a favor do aborto e se diz católico. Votou Lula em 2002 e José
Serra em 2004. É contra as cotas
nas universidades e milita numa ONG de defesa da mata
Atlântica.
Por desarrumada, essa cabeça
pode pensar tudo ao contrário e
não faz a menor diferença. A
desarrumação determina e incentiva o debate.
Opõe-se a um mundo de
idéias ordenadas no qual a pessoa deve se preocupar em "pensar direito" entendendo-se que
sempre haverá alguém explicando o que vem a ser "pensar
direito".
Houve uma época em que a
expressão "raciocinar em bloco"
designava, com alguma ironia,
inteligências ou culturas privilegiadas, sacerdotes do bem pensar. Aceitando-se as virtudes do
mestre, esperava-se sua opinião
e ia-se atrás. Essa atitude tanto
pode colocar uma pessoa na
condição de discípulo de um
grande pensador como pode
embalá-la na treva da ignorância. O segundo caso ocorre com
mais freqüência.
As cabeças arrumadas brasileiras, atraídas pela construção
de modelos intelectuais harmônicos, dão pouca atenção ao
funcionamento da sociedade.
Preferem evitar o assunto. Alguns exemplos:
O bem pensar urbano do Rio
de Janeiro legislou que é proibido construir apartamentos com
menos de 30 metros quadrados.
Coisa de gente muito bem educada. Faltou dizer onde vai morar uma família que não tem dinheiro para essa metragem. Na
favela, por certo. A discussão
dessa lei de incentivo à favelização está fora do debate urbano
carioca.
O bem pensar tributário estabeleceu que os serviços de telefonia devem ser taxados com
mão-de-ferro, pois vai-se tomar
dinheiro do andar de cima para
custear investimentos que atenderão ao de baixo. Deu no seguinte: o patrão fala com Paris
de graça pelo Skype e a empregada paga R$ 5 por um telefonema de dez minutos para Bangu.
Um imposto destinado a buscar
justiça produz injustiça, mas o
tema está fora da agenda dos teletecas.
O bem pensar diplomático levou Lula a propor uma cruzada
mundial contra a fome. Fez isso
em Genebra, Paris e Nova York.
Passados dois anos, contou que
gostaria de arrumar recursos
para combater a desnutrição
d'África aumentando as taxas
de embarque nos aeroportos
brasileiros. Falta dizer aos usuários do Galeão que eles pagam
uma das taxas mais altas do
mundo, o dobro do que se cobra
no aeroporto Kennedy.
Num caso mais farisaico, tome-se o exemplo da legislação
penal brasileira. Bem pensada,
faz inveja a um advogado sueco.
São muitos os doutores que fazem palestras pelo mundo descrevendo essa jóia de modernidade. Jamais um ministro da
Justiça vai contar que as maravilhas são parolas. O que vale
mesmo é a lei da massa. O bandido que entra na prisão passa a
uma nova instância judicial, a
de seus pares. Maltratou a mãe?
Morre. Estupro? Se não morrer,
sofre o que fez. Respeito, só para
os estelionatários."
No Brasil das cabeças desarrumadas, cada tema poderá ser
discutido e avaliado isoladamente. Muitas opiniões resultarão contraditórias, mas é esse
exercício do juízo individual
que enriquece o debate público.
Harmonia e nexo podem ser
desejáveis, mas é preferível conviver com pessoas de cabeça desarrumada cujas opiniões não
formam um nexo final do que
aturar gente que tem muito nexo mas não se responsabiliza
pelas opiniões que dá.
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