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ENTREVISTA DA 2ª/TIÃO ROCHA
Vencedor do Prêmio Empreendedor Social 2007 desenvolve desde 1984 formas diferentes para a criança aprender brincando
"Essa escola formal não serve para educar ninguém"
"A ESCOLA formal não está só na forma.
Está dentro da fôrma. O pior é quando está no formol. É um cadáver." É
assim que o educador mineiro Tião
Rocha, 59, vê o ensino convencional, de cujos métodos e conteúdos se afastou há mais de 20 anos para experimentar processos alternativos de educação.
À frente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento desde 1984, Rocha sempre persegue "maneiras
diferentes e inovadoras" de educar, alfabetizar, gerar
renda. Ele distingue educação de escolarização e busca um sonho: escolas que sejam tão boas que professores e alunos queiram freqüentá-las aos sábados, domingos e feriados. "Se ninguém fez, é possível", diz.
UIRÁ MACHADO
COORDENADOR DE ARTIGOS E EVENTOS
FOLHA - Toda a sua história como educador é feita do lado de fora das escolas
formais. Por quê?
TIÃO ROCHA - Se eu tivesse um
analista, isso seria um prato
cheio para ele. Comecei a ter
problemas com a escola desde
que entrei, aos sete anos.
Logo no primeiro dia de aula,
a professora leu um livro: "Era
uma vez um lugar muito distante, onde havia um rei e uma
rainha (...)". Eu levantei a mão e
falei: "Professora, tenho uma
tia que é rainha". Ela me mandou calar a boca. Depois que a
interrompi duas ou três vezes,
fui para a sala da diretora.
A partir daí, eu sempre inventava coisa para matar a aula.
Nunca tive uma escola boa.
Nunca tive prazer na escola,
mas sempre quis aprender.
Quando fui para a faculdade,
estudei história e antropologia,
fui resgatar a história da minha
tia, que era rainha do congado.
Para pagar os estudos, eu
precisava trabalhar. Fui dar aula e me dei conta de que, se eu
achava aquilo chato, meus alunos também, porque eu era um
reprodutor da mesma chatice.
FOLHA - E conseguiu mudar?
ROCHA - Criava jeitos diferentes de trabalhar com os alunos,
inovava, mas, no fim, era uma
experiência muito reformista.
Ela começou a ser transformadora quando aconteceu o fato
com o Álvaro, minha primeira
grande perda [o garoto, excelente aluno, se suicidou].
Aí eu falei: "Opa! Não adianta
querer que os meninos aprendam história se eu não consigo
aprender a história da vida deles". Comecei a deixar de lado
não só a forma mas também o
conteúdo. Fui me libertando
dos conteúdos cheirando a mofo e vi que estava partindo para
outra coisa. Esse processo foi
evoluindo na reflexão sobre o
que é deixar de ser professor e
virar educador. O professor ensina, o educador aprende.
FOLHA - O sr. começou seus projetos
fora da escola, debaixo do pé de manga. O sr. acha que a escola formal serve
para alguma coisa?
ROCHA - Ela serve para escolarizar. Dá um determinado tipo
de informação e de conhecimento que atende a um determinado tipo de demanda, um
determinado tipo de modelo
mental de uma sociedade que
aceita, convive e não questiona.
FOLHA - Essa escola educa?
ROCHA - Não. Ela escolariza.
Uma coisa é falar em educação,
outra é falar em escolarização.
A maioria das pessoas que estão cometendo grandes crimes
é escolarizada. Então, que escola é essa? Para que ela serve?
Não é para educar.
E essa escola continua sendo
branca, cristã, elitista, excludente, seletiva, conformada.
Ela seleciona conteúdos, seleciona pessoas, mas não educa.
FOLHA - O que significa ser branca?
ROCHA - Por exemplo: eu nunca
tive aula sobre os reis do Congo,
mas tinha aula sobre todos os
Bourbons, reis europeus.
FOLHA - E conformada?
ROCHA - A escola não permite
inovação. Ela é reprodutora da
mesmice. A escola formal não
está só na forma. Ela está dentro da fôrma. O pior é quando
ela está dentro do formol. É um
cadáver. O conteúdo da escola
está pronto. Os meninos que
vão entrar na escola no ano que
vem, independentemente de
quem sejam, de suas histórias,
aprenderão as mesmas coisas.
Recentemente, uma menina
de nove anos, lá em Curvelo, virou para mim e disse: "Tião,
vou ter prova e esqueci o que é
hectômetro". Eu disse a ela que
ninguém precisa saber o que é
isso, que não se preocupasse, isso não cairia na prova. Mas
caiu. Agora, criança de nove
anos tem que saber isso? Do
ponto de vista da escolarização,
vai tudo bem. Se está educando
ou não, ninguém discute.
FOLHA - Como deveria ser a educação?
ROCHA - Um projeto de vida,
não de formação para o mercado. A lógica da vida não é ter um
emprego. Ter analfabetos não
pode ser um problema econômico, é um problema ético.
A experiência que a gente
vem desenvolvendo no CPCD é
saber se é possível fazer educação de qualidade. Claro que é.
Só que você tem que botar uma
pergunta que a gente sempre
faz. É o MDI: "De quantas maneiras diferentes e inovadoras
eu posso"... O resto você completa com uma ação: educar, alfabetizar, diminuir a violência.
FOLHA - Até onde vale criar soluções?
ROCHA - Na educação, qual é a
melhor pedagogia? É aquela
que leva as pessoas a aprender.
Na escolarização, a melhor pedagogia é aquela que dá mais
sentido para quem a aplica.
O CPCD foi secretário da
Educação de Araçuaí (MG). Os
meninos demoravam duas horas no ônibus. Então colocamos
educadores no ônibus. Toda secretaria de Educação pode fazer. É só sair da caixa.
Uma outra questão é o acesso
aos livros. Eu me perguntei se
os livros perderam o encantamento ou se foi a escola que não
soube mantê-los encantados.
Juntei um monte de livros
em baixo da árvore e mandava a
meninada ler. Em volta, deixava montinhos de sucata e escrevia uma placa: música, teatro,
artes plásticas, literatura. Tudo
que o menino lesse, tinha que ir
numa direção e fazer música,
teatrinho etc. É um jogo. Ler e
transformar, do seu jeito.
Eles ficavam lá a tarde inteira. Vinha gente de longe. Por
que esses meninos nunca tinham entrado numa biblioteca
da escola? Porque eles não tinham prazer. Quando iam ler
um livro, tinham que dissecar a
obra, responder a perguntas.
FOLHA - Como mexer no conteúdo do
ensino? Tem um conteúdo básico?
ROCHA - Claro. Tem que ter alguma coisa para começar. Precisa aprender os códigos de leitura, raciocinar e fazer cálculo,
as quatro operações básicas.
Mas não precisa saber o que é
hectômetro.
Há uns 20 anos, tinha um
projeto do governo para combater a doença de chagas no
sertão. Iriam construir casas de
cimento no lugar das de adobe.
O adobe resolve bem a questão
térmica, o cimento, não. Mas os
engenheiros disseram que não
sabiam fazer casa de adobe de
qualidade. Fiquei imaginando:
eles não foram formados para
fazer casas dignas para a população. Querem fazer em São
Paulo e no sertão uma casa do
mesmo tipo. Que lógica é essa?
É a lógica do modelão.
FOLHA - O sr. é a favor de uma pedagogia específica para cada pessoa?
ROCHA - Não. O que não pode é
aprender uma única coisa, todo
mundo igual, dar pesos desiguais, negar ou excluir coisas
em função de critérios que são
ideológicos. Mas não é "cada
um faz o que quer".
É possível criar uma sociedade polivalente, diversificada? É,
porque não foi feito ainda. Se
ninguém fez, é possível. Isso é o
que eu chamo de utopia. Utopia
para mim não é um sonho impossível. É um não-feito-ainda,
algo que nunca ninguém fez.
É possível aprender brincando? Vamos ver. A gente aprende fazendo. Aí eu coloco um indicador: a escola ideal deve ser tão boa que professores e alunos desejem aulas aos sábados,
domingos e feriados. Hoje, temos exatamente o contrário.
FOLHA - Como nasce uma nova forma
de ensinar?
ROCHA - Da dificuldade ou da
pergunta. Somos movidos por
uma pergunta, que vira um desafio, que vira uma encrenca. É
possível educar debaixo do pé
de manga? Vamos ficar pensando ou vamos aprender fazendo? O nosso verbo é o "paulofreirar", que só se conjuga no presente do indicativo: eu
"paulofreiro", tu "paulofreiras"
e por aí vai. Não existe "paulofreiraria", "paulofreirarei".
Ação e reflexão, agora.
As respostas vão sendo testadas e viram novas metodologias, pedagogias. Assim surgiu a
pedagogia da roda, um jeito de
combater a evasão dos meninos.
FOLHA - Seus métodos são tão abertos
a ponto de aceitar que uma criança
queira aprender na escola formal? Ou
você quer acabar com a escola?
ROCHA - Eu não quero acabar
com a escola. Ela é muito mais
importante do que parece. Mas
ela precisa ter a ousadia de experimentar. É uma lástima dar
às crianças só o que a escola formal oferece. É muito pouco.
As pessoas querem tirar os
meninos da rua e levar para a
escola. Por que, em vez de tirar
da rua, não mudamos a rua?
Lugar de criança é na escola, na
rua, em todos os espaços. Todos
os espaços podem ser de aprendizado. Há experiências de cidades educativas muito legais.
FOLHA - Como é sua relação com os governos?
ROCHA - Eu não vejo muita diferença. Todos eles estão dentro da mesma caixa, só muda a
cor. A escola que tem agora não
é muito diferente da de oito
anos ou 20 anos atrás. A gente
não consegue estabelecer
alianças com os governos porque incomoda pensar fora da
caixa. Então a gente vem
aprendendo a fazer política pública não-governamental.
NA INTERNET: Leia mais trechos da
entrevista com Tião Rocha em www.folha.com.br/073271
Saiba mais sobre a origem e funcionamento dessas pedagogias em www.folha.com.br/073272
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