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ARTIGO
O fórum entre dois senhores
DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA
O Fórum Social Mundial em
Caracas cindiu-se em duas
visões de mundo e duas concepções da política essencialmente
inconciliáveis. O chavismo, que
financiou o evento, largamente
predominante entre os jovens
participantes, é bolivariano, nacionalista e terceiro-mundista. Os
dirigentes das principais ONGs
(organizações não-governamentais) que controlam as estruturas
de decisão do fórum são porta-vozes de uma nebulosa ideológica
internacionalista que se define
pela bandeira de "uma outra globalização". As queixas, vazadas
em uma doce linguagem hipócrita, de personagens como os brasileiros Cândido Grzybowsky e
Oded Grajew, do Conselho Internacional do Fórum, à "dependência" em relação a Hugo Chávez
são tênues indícios da crise instalada naquilo que foi concebido
como um festival planetário de
promoção dos interesses das
ONGs.
Chávez intuiu desde o início as
possibilidades abertas pela realização do fórum em Caracas. A decisão de financiá-lo integralmente
e a paralela mobilização das organizações de base do chavismo
criaram o efeito midiático de um
ato mundial de solidariedade à revolução bolivariana, com seqüelas inevitáveis como a reverberação do incipiente culto à sua personalidade. O seqüestro político
do evento pelo líder venezuelano
manifestou-se já na passeata
inaugural, à qual, adornado com
o botom de Chávez, aderiu até José Dirceu, que na condição de primeiro-ministro informal de Lula
dedicou-se a tecer laços diplomáticos clandestinos entre o Palácio
do Planalto e a Casa Branca.
Aos olhos das principais ONGs
do fórum, o chavismo é um anacronismo. Chávez é um herdeiro
extemporâneo de um complexo
ideológico que, no seu apogeu,
misturou reminiscências marxistas, o pensamento desenvolvimentista da Cepal (Comissão
Econômica para a América Latina) e o mito romântico da revolução camponesa e indígena. Ele
acredita na unidade anti-imperialista da América Latina e no desenvolvimento autônomo da Venezuela. Sobretudo, acredita que
o Estado é o motor da reforma social e do progresso. Isso é algo imperdoável para gente como
Grzybowsky e Grajew.
A maioria do Conselho Internacional do Fórum treme só de pensar em revoluções. As ONGs são
um produto da globalização e
seus interesses situam-se no campo de forças configurado pelas
instituições políticas e econômicas multilaterais. A crítica à globalização, sua razão de existir, é uma
crítica interna, associada e comprometida. Elas não pretendem
mudar o estado das coisas, mas
infundir "responsabilidade social" às grandes empresas e contribuir para a "boa governança".
São parceiras da ONU, do Banco
Mundial, da Comissão Européia,
da Fundação Ford. São financiadas pelas instituições multilaterais, e também pelos governos nacionais que privatizam disfarçadamente os serviços públicos
transferindo ao chamado Terceiro Setor responsabilidades gerenciais nos campos da educação, da
saúde, da assistência social e do
meio ambiente.
A relação das ONGs que dirigem o fórum com a ordem mundial é similar à que prende a oposição parlamentar à monarquia
britânica: a sua missão é criticar,
espernear e gritar, azeitando as
engrenagens da globalização. Isso
combina bem com ícones românticos sacralizados, como a ubíqua
imagem de Che Guevara. Mas
não combina com a adoração de
ícones vivos que, no poder, recuperam a linguagem política de
tempos turbulentos.
Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana pela USP e editor de Mundo
Geografia e Política Internacional, é colunista da Folha.
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