São Paulo, sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

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ARTIGO

O fórum entre dois senhores

DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA

O Fórum Social Mundial em Caracas cindiu-se em duas visões de mundo e duas concepções da política essencialmente inconciliáveis. O chavismo, que financiou o evento, largamente predominante entre os jovens participantes, é bolivariano, nacionalista e terceiro-mundista. Os dirigentes das principais ONGs (organizações não-governamentais) que controlam as estruturas de decisão do fórum são porta-vozes de uma nebulosa ideológica internacionalista que se define pela bandeira de "uma outra globalização". As queixas, vazadas em uma doce linguagem hipócrita, de personagens como os brasileiros Cândido Grzybowsky e Oded Grajew, do Conselho Internacional do Fórum, à "dependência" em relação a Hugo Chávez são tênues indícios da crise instalada naquilo que foi concebido como um festival planetário de promoção dos interesses das ONGs.
Chávez intuiu desde o início as possibilidades abertas pela realização do fórum em Caracas. A decisão de financiá-lo integralmente e a paralela mobilização das organizações de base do chavismo criaram o efeito midiático de um ato mundial de solidariedade à revolução bolivariana, com seqüelas inevitáveis como a reverberação do incipiente culto à sua personalidade. O seqüestro político do evento pelo líder venezuelano manifestou-se já na passeata inaugural, à qual, adornado com o botom de Chávez, aderiu até José Dirceu, que na condição de primeiro-ministro informal de Lula dedicou-se a tecer laços diplomáticos clandestinos entre o Palácio do Planalto e a Casa Branca.
Aos olhos das principais ONGs do fórum, o chavismo é um anacronismo. Chávez é um herdeiro extemporâneo de um complexo ideológico que, no seu apogeu, misturou reminiscências marxistas, o pensamento desenvolvimentista da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) e o mito romântico da revolução camponesa e indígena. Ele acredita na unidade anti-imperialista da América Latina e no desenvolvimento autônomo da Venezuela. Sobretudo, acredita que o Estado é o motor da reforma social e do progresso. Isso é algo imperdoável para gente como Grzybowsky e Grajew.
A maioria do Conselho Internacional do Fórum treme só de pensar em revoluções. As ONGs são um produto da globalização e seus interesses situam-se no campo de forças configurado pelas instituições políticas e econômicas multilaterais. A crítica à globalização, sua razão de existir, é uma crítica interna, associada e comprometida. Elas não pretendem mudar o estado das coisas, mas infundir "responsabilidade social" às grandes empresas e contribuir para a "boa governança". São parceiras da ONU, do Banco Mundial, da Comissão Européia, da Fundação Ford. São financiadas pelas instituições multilaterais, e também pelos governos nacionais que privatizam disfarçadamente os serviços públicos transferindo ao chamado Terceiro Setor responsabilidades gerenciais nos campos da educação, da saúde, da assistência social e do meio ambiente.
A relação das ONGs que dirigem o fórum com a ordem mundial é similar à que prende a oposição parlamentar à monarquia britânica: a sua missão é criticar, espernear e gritar, azeitando as engrenagens da globalização. Isso combina bem com ícones românticos sacralizados, como a ubíqua imagem de Che Guevara. Mas não combina com a adoração de ícones vivos que, no poder, recuperam a linguagem política de tempos turbulentos.


Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana pela USP e editor de Mundo Geografia e Política Internacional, é colunista da Folha.


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