São Paulo, quarta, 27 de janeiro de 1999

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ELIO GASPARI
O golpismo de Tarso Genro

O ex-prefeito de Porto Alegre Tarso Genro publicou anteontem, na Folha, um artigo pedindo que FFH envie ao Congresso uma emenda constitucional convocando eleições presidenciais para outubro, "dando um desfecho racional ao seu segundo e melancólico mandato, que terminou antes mesmo de começar".
A proposta de Tarso Genro é golpista. Poderia ser chamada também de oportunista e primitiva, mas isso seria uma ofensa aos primitivos e aos oportunistas. Eles não são necessariamente golpistas. A turma que defendia a sobrevalorização do real e agora trata a nova política cambial como se fosse um dado da natureza, semelhante ao pescoço da girafa, é oportuni$ta, mas não é necessariamente golpista. O cacique caiapó Kukriti, que há um ano fez chover em Roraima, é primitivo, mas também não é golpista. O golpismo é uma forma superior de primitivismo oportunista.
FHH é o presidente constitucional do país até o dia 1º de janeiro de 2002 e nessa condição permanecerá. Foi eleito pela maioria dos cidadãos, no primeiro turno. Tem um mandato indiscutível e a sua simples contestação capitula delito ou excentricidade.
Dividem-se as pessoas que reelegeram FFH em dois grupos. No primeiro estão aquelas que não admitiam a hipótese de conviver com Luiz Inácio Lula da Silva e Leonel Brizola no Planalto. Essas conseguiram o que queriam e não se pode dizer que tenham cometido qualquer tipo de erro.
No segundo estão as que acreditaram no que dizia o marquetucanato e desprezaram as advertências da oposição. Essas, desgosta dizer, foram engabeladas. Mesmo quem acha preferível ter FHH no Planalto pode admitir que durante a campanha eleitoral a problemática brasileira apresentada por Lula era amarga e verdadeira. A de FHH, doce ilusão. Nessa época, quando o país tinha US$ 50 bilhões de reservas, Tarso Genro sustentava que, "se não houver um controle cambial sério, o real vai por água abaixo, seja qual for o resultado da eleição". Tinha toda razão.
Agora ele propõe a interrupção do mandato do presidente da República. Sustenta que essa idéia é correta porque o país está nas mãos de um governante "apático, inepto e irresponsável". Novidade, porque em 1996, mesmo atacando a política econômica do governo, Tarso Genro achava que FFHH "colocou o estatuto da Presidência num patamar superior, pela qualidade do quadro político que ele é".
Como todas as propostas golpistas, a de Tarso Genro é marota. Apenas para efeito de demonstração, cabe perguntar: com que votos seria aprovada essa emenda? Com os do PT, insuficientes para impedir que os servidores públicos sejam tungados? Com os do PFL, do PMDB e do PPB, por certo.
Não se pode admitir que Tarso Genro aceite essa hipótese, porque ele se opôs à formação de uma frente destinada a barrar a reeleição, com o argumento de que não pretendia se juntar ao senador José Sarney e a Paulo Maluf. Se não o fez em 1996, não o faria agora.
A idéia do ex-prefeito de Porto Alegre é mais astuta do que ingênua. Trata-se de fincar a estaca da proposta da interrupção do mandato, marcar uma posição. A desgraça está precisamente aí, no surgimento de uma liderança capaz de ver conveniência no golpismo. Tomado nas suas melhores intenções, é um golpe parlamentar, limpo, seguido de eleições. Mesmo nessa versão beata, carrega a convicção de que um presidente possa ser afastado pelo que se julga ser um mau desempenho.
Nesse caso, a República fica submetida às regras dos elencos das telenovelas, nas quais se purifica o elenco explodindo-se o shopping.
Tarso Genro tem 51 anos. Em sua vida adulta, a democracia brasileira nunca produziu uma cena na qual um cidadão, eleito pelo povo para a Presidência, passou a faixa a outro, encarregado de sucedê-lo. Isso aconteceu porque, como advertiu Otávio Mangabeira há mais de 50 anos, essa democracia é uma "planta tenra". Precisa mais de rega que de poda.
No mandarinato de FHH, a oposição teve o grande mérito de denunciar o irrealismo consumista do real sobrevalorizado. Teve a virtude de insistir, mesmo gramando impopularidade, sendo chamada de catastrofista e neoboba. Remou contra a maré, e graças a isso, está hoje na praia, enquanto o navio de FFH está com água no salão de baile.
Em vez de se apresentar à sociedade como alternativa dentro do quadro constitucional, Tarso Genro preferiu atravessar a rua para escorregar numa casca de banana que estava na outra calçada. Alimentou o pior dos preconceitos que acompanham a oposição. Aquele segundo o qual ela é tão do contra, que é contra até o fato de estar certa.



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