São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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JANIO DE FREITAS

Coincidências para você também


De onde saíram os brados que sufocaram, com os novos temores da fome, as ondas emitidas pela crise dos EUA?

ALIMENTOS encarecidos têm mais do que nutrientes: adquirem, com o novo preço, poderes milagrosos.
A alta de gêneros alimentícios do comércio internacional, figurantes entre as chamadas "commodities", é uma constante que vem de anos. No primeiro trimestre deste ano, alguns preços subiram bastante, outros se equilibraram mais ou menos, como sempre, diante de fatores que distribuem influências desiguais. De repente, de um momento mesmo para outro, soam os berros de calamidade, fome e morte, até inevitáveis guerras, o pânico internacional dito, televisado, escrito e impresso por causa da alta dos preços de gêneros.
Nos Estados Unidos, certas regiões tomam a imediata providência de racionar a compra individual de arroz. Governos suspendem a exportação de arroz e de trigo. Outros compram o que encontram para fazer estoques extraordinários. O Brasil é culpado por causa do biocombustível. A culpa é dos Estados Unidos por causa do biocombustível. Culpada é a Europa, com os subsídios à sua agricultura. O aumento do petróleo é o culpado. Mas a queda do dólar o compensa. O mundo todo acusa o acréscimo de 400 milhões de chineses à humanidade que se alimenta, como se esses tantos milhões houvessem nascido famintos no começo deste mês.
Então, a coincidência milagrosa: o desastre da economia dos Estados Unidos e do seu dólar, já por meses difundindo incertezas crescentes em todo o planeta, cada novo dia como um novo motivo de temor do futuro -tudo isso sumiu de repente, de um momento mesmo para outro, soterrado pela avalanche das terríveis ameaças trazidas pelo aumento de preços dos alimentos. Sem qualquer nova escassez, em comparação com a tradicional de distribuição desumana de fartura e falta, para fundamentar a difusão do pânico.
Mas o antecedente dessa mutação milagrosa foi também um milagre. De onde saíram os brados poderosos que sufocaram, com os novos temores da escassez e da fome, as ondas emitidas pela crise financeira dos Estados Unidos? De duas entidades financeiras. Uma, o FMI, que já no nome só se interessa pelo valor das moedas, jamais sensibilizável pelos efeitos anti-sociais de sua opressão antiinflacionária para fortalecer o dinheiro, agora milagrosamente preocupado com a miséria e a fome. Outra, o sempre questionável Banco Mundial.
Não é interessante a coincidência entre o surgimento de uma onda repentina e o automático esquecimento da crise que continua nos Estados Unidos? Haverá quem veja aí o vício da teoria da conspiração. Mas nem por isso altera a coincidência e o que quer que signifique. Como obra ou como coincidência, simplesmente.
Mais agradável é a coincidência à brasileira. O PSDB e o DEM cederam à civilização e, ao menos por ora, contiveram prometidas iniciativas que ampliariam o confronto entre militares, sob impulso de muitos empijamados, e o governo Lula. A aparente sensatez deu-se, por coincidência, quando dois outros fatos ocorriam: pressões de governistas, inclusive ministros, para conter o PSDB do Senado e a direção do DEM; e o recado aos comandos militares de que Lula concederia, ainda na semana passada, o aumento entre 35% e 138% para as Forças Armadas. Não há crise, de determinado tipo, que resista à sua coincidência com um agrado. Ainda que às vezes seja caro e traga mais problemas, como um porta-aviões que, por coincidência, pacificou um foco golpista contra Juscelino.


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