São Paulo, quarta-feira, 27 de julho de 2005

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COMENTÁRIO

Duas éticas em conflito

LUIZ TENÓRIO OLIVEIRA LIMA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num evento público, como esta CPI dos Correios, se entrecruzam, em diversos níveis, o público, a dimensão política dos fatos, e o privado, sua dimensão doméstica, psicológica.
No caso em foco -o depoimento de Renilda de Souza-, a natureza dramática do interrogatório torna-se mais visível, pelo fato de ela ser simultaneamente sócia e mulher de Marcos Valério. Assim, interligaram-se dois planos que revelam na performance uma ambigüidade interessante.
Essa ambigüidade interessa porque decorre da estrutura da situação, para além das estratégias de defesa e de acusação. Como mulher de Marcos Valério, está e se sente ligada ao marido, protege-o, assume-se responsável. Como mãe e dona-de-casa, manifesta-se com ternura e firmeza.
Quanto aos negócios públicos, declara ignorância. Não gosta de política. Desculpa-se. Parece sincera. Está sendo sincera. Embora seja também evidente que se omite e dissimula.
Um senador, ao inquiri-la, parece tocar o núcleo de seu conflito: a lealdade privada ao companheiro de 25 anos ou a lealdade aos princípios que regem a vida coletiva -os princípios republicanos.
Simplificando: a uma ética fundada em princípios, Renilda contrapõe uma ética fundada nos sentimentos. Indagada, ela hesita por alguns segundos, chora, e a sessão é interrompida com o consentimento de todos.
O observador então pode vislumbrar por alguns instantes a dúvida, a ameaça de rompimento da frágil sutura entre expectativas relativas a seu lugar no mundo público, na cidade, e aquelas relativas ao seu futuro e ao futuro da sua relação privada (conjugal e amorosa). Por alguns segundos, a dúvida: valerá a pena o sacrifício? Terá ele, Valério, a mesma lealdade em situação semelhante?
O observador percebe que, nesse momento exato, seu desempenho atinge o ponto mais alto (a emoção sincera expressando o sacrifício dos princípios) e o mais baixo (a dissimulação como forma, não de se proteger, mas de proteger o sócio-cônjuge).
Quando retorna, está refeita, recupera a firmeza e de fato desperta no espectador compreensão e indulgência. É então que o ambiente torna-se mais relaxado. Pode-se perceber nos lapsos de linguagem uma alusão reiterada à ambigüidade de sua situação: mulher e cidadã.
Seu nome é confundido com o nome Karina. O presidente da CPI, Delcídio, diz que o nome Karina lhe ocorreu por lembrar o romance de Tolstói -Anna Karina, corrige "Ana Karênina". Sorrisos. O inconsciente cumpriu seu dever e ao psicanalista não foi necessária nenhuma interpretação.


Luiz Tenório Oliveira Lima é psicanalista, autor de "Freud" (Publifolha)

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