São Paulo, Sexta-feira, 27 de Agosto de 1999
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PROTESTO
Marcha em Brasília transforma a expressão criada pelo presidente em uma ironia com o governo
"Voz rouca das ruas" vira-se contra FHC

CLÓVIS ROSSI
do Conselho Editorial


A "Marcha dos 100 Mil" acaba sendo o instrumento para uma tremenda ironia: de alguma forma, coloca o governo Fernando Henrique Cardoso como prisioneiro de uma expressão ("a voz rouca das ruas") que o próprio presidente criou, em janeiro de 1997, para pedir ao Congresso que apressasse a votação das reformas constitucionais, entre elas a que permitia a reeleição.
Supunha, então, o presidente que a "voz rouca das ruas" pedia que lhe fosse concedido o direito de disputar a reeleição, em um momento de alta popularidade de quem era identificado como o vencedor do dragão da inflação. Ganhou.
Agora, até aliados do governo, como o presidente da Câmara, Michel Temer, insinuam que a "voz rouca das ruas" está pedindo mudanças, se não no comando do governo pelo menos na política econômica.
É claro que seria um exagero confundir a manifestação de ontem, organizada pelos partidos de oposição, com a totalidade da "voz rouca das ruas". Militantes oposicionistas se manifestam contra o governo por definição, ainda que não tenham necessariamente o respaldo dos demais.
Mas os políticos, com antenas sempre ligadas para captar os sinais da rua, por necessidade de sobrevivência, sabem que os manifestantes de ontem (qualquer que seja o número que cada um preferir aceitar como mais próximo da verdade) são a expressão objetiva, para câmeras de TV e fotógrafos, da massa amorfa que, majoritariamente, considera "ruim/péssimo" o governo FHC, conforme mostram todas as pesquisas recentes.
Daí a traduzirem o inexequível "fora FHC" ou "basta de FHC" por "mudanças-já" é um passo. No fundo, o que está em jogo é menos o impeachment e, muito mais, a política econômica e seus efeitos sociais.
"O presidente não tem por que não ouvir o que foi dito sobre saúde, educação, desemprego", afirma, por exemplo, o deputado Inocêncio Oliveira (PE), líder na Câmara do maior partido de sustentação do governo, o PFL.
De certa forma, é a repetição, em ponto infinitamente menor, é claro, do que ocorreu com a campanha das "Diretas-Já" de 1984-85. Pedia-se a volta das eleições diretas como instrumento para mudanças nas políticas.
Tanto que se aceitou, derrotado o movimento no Congresso, a mudança pela via indireta mesmo, na forma da candidatura de Tancredo Neves.
Agora também, como admitiram reservadamente os líderes da "Marcha" a dirigentes do Congresso, o objetivo é mais o de praticar "um gesto político", o que foi conseguido, do que obter a CPI sobre a privatização das teles e, por meio dela, tentar abrir um processo por crime de responsabilidade contra o presidente.
De todo modo, o fato de o "gesto político" ter tido êxito não esconde a dificuldade de soldar a oposição em um bloco de fato coeso e, ao mesmo tempo, conseguir para futuros "gestos" a adesão de entidades da sociedade civil (como a OAB e a ABI) que foram importantes nas "Diretas-Já" e no movimento pelo impeachment de Fernando Collor.
Setores ou lideranças oposicionistas, como Leonel Brizola e o MST, insistem em pedir a renúncia de FHC.
A maioria do PT entende, no entanto, que não se pode cobrar o que é ato unilateral de vontade do presidente, sob pena de o movimento se esterilizar.
Agora, oposição e governo cuidarão, cada um a sua maneira, de entender o recado dado pela "voz rouca das ruas", que criou o primeiro fato político relevante de parte da oposição nos quatro anos, sete meses e 26 dias do reinado de FHC.


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