São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NO PLANALTO

Brasília já ensaia o balé das cadeiras

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Sem querer empanar a iminente vitória de Lula, feito notável, sugere-se ao virtual presidente que concilie os festejos com a leitura do livro "Deodoro, a Espada contra o Império", de Raimundo Magalhães Jr. (1907-1981).
Lendo-o, Lula talvez caia mais cedo das nuvens da campanha para o chão escorregadio da ante-sala do poder. Faltando-lhe tempo, pode ir direto ao trecho que reconstitui reunião ministerial ocorrida em 27 de setembro de 1890.
O marechal Deodoro da Fonseca e o general Benjamin Constant vinham de fundar a República, no ano anterior. Dirigindo-se a Constant, que chefiava a pasta da Instrução, Correios e Telégrafos, Deodoro reclamou da nomeação de alguém para o posto de tesoureiro dos Correios do Rio Grande do Norte sem prévia consulta ao governador local.
Abespinhado, Constant ergueu a voz: "Eu nunca me prestarei a servir de peteca a nenhum governador...". E Deodoro: "Não há razão para se exaltar. Tenho-lhe dado muitas provas de apreço".
As palavras de Constant mantiveram-se ásperas: "...esta é a maior das decepções por que tenho passado. Nossas relações já não são as mesmas. Andam estremecidas". No bate-rebate, chamou o chefe de "tolo", de "monarca de papelão".
"Para militares, como nós, só um duelo", desafiou Deodoro, fora de si. "Pois seja", aquiesceu Constant. "Tragam as armas e vamos decidir já, neste momento..." Não houve duelo. Constant morreria meses depois, afogado em mágoas.
Vêm de longe, como se vê, as rinhas por cargos públicos. Como Lula jamais foi testado em função executiva, não se sabe se tem vocação para "peteca". Mas logo se descobrirá. Brasília o espera de mãos espalmadas.
Em jejum, petistas terão de medir forças com neopetistas, alguns com os cotovelos colados à mesa do banquete há anos. O distinto público não sabe, mas o mapa da guerra está na internet.
Eis o endereço: www.siorg.redegoverno.gov.br. Siorg quer dizer Sistema de Informações Organizacionais do Governo Federal. Coisa fina. Cataloga mais de 46 mil órgãos públicos. Anota nome e sobrenome dos ocupantes de cerca de 25 mil repartições públicas. Falta o principal: os nomes dos padrinhos.
A digital por trás das nomeações está numa planilha eletrônica secreta, disponível apenas em computador do Planalto. Embora civilizada, a transição não prevê a entrega a Lula do catálogo de incivilidades praticadas por FHC no balcão da fisiologia. O PT brincará de peteca no escuro.
Lula lidará com profissionais. Gente que sabe onde estão as cerca de 5.000 cadeiras mais cobiçáveis da República. O lote mais disputado roça a casa dos 600. Um detalhe os torna mais atrativos que os demais: seus ocupantes manuseiam o talão de cheques.
Se obtiver todos os votos que as pesquisas lhe atribuem, Lula chegará a Brasília carregado pelo maior índice de aprovação popular que as urnas já conferiram a alguém. Mas a sorte do governo petista começará a ser testada no Congresso, uma arena em que estão em jogo 594 votos -513 deputados e 81 senadores.
O PT elegeu vistosas bancadas. Mas, sozinho, não aprova nada. O mesmo Lula que outrora contabilizava "300 picaretas" no Congresso hoje está condenado à composição. "Vou conversar com todo mundo", diz. Os acertos com Sarney e Quércia demonstram que fala sério.
Os gestores da fisiologia tucana dividiram os congressistas em três grupos: o primeiro, dos "ideológicos", fez oposição radical a FHC; o segundo, dos "temáticos", condicionou o voto à argumentação técnica; o último grupo, apelidado de "geléia geral", concentra o pessoal do "que é que eu levo nisso".
Compõem a "geléia", só na Câmara, algo como 150 parlamentares. Difícil aprovar emendas constitucionais sem a ajuda dessa gente.
"Se o PT vencer as eleições e achar que deve conversar com o PMDB, conversaremos", dizia, na quarta-feira, Geddel Vieira Lima. "Mas conversas, de preferência, públicas e transparentes, sobre teses e idéias."
É pena que FHC não faculte ao PT o manuseio de sua planilha secreta. Examinando-a Lula identificaria os feudos de Geddel. Entre eles a presidência da Cia Docas da Bahia, entregue a Afrísio Vieira Lima, seu pai. Que tal um debate "público e transparente" sobre "teses e idéias" que justificam a subordinação de nacos da máquina estatal ao interesse político?
O cacique Jorge Bornhausen informa que o seu PFL, no poder desde Cabral, ruma para a oposição. O anúncio esbarra, de novo, na planilha confidencial de FHC. O conteúdo não deixa dúvida quanto à vocação da tribo que Bornhausen imagina liderar e que o petista José Dirceu já assedia em diálogos clandestinos.
A sanha fisiológica da nação pefelê não poupa nem os fundões do Estado. Abocanham-se até órgãos inservíveis como o Denocs (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca). O braço piauisense da repartição foi posto, por exemplo, a serviço do pefelista Mussa Demes. Seu afilhado é Rubens Felippe Demes.
A planilha da fisiologia expõe outro problema para Lula. O PL do seu vice José Alencar está à míngua. O desejo de ser protagonista na nova coreografia distributiva explica a guinada à esquerda da legenda da Igreja Universal.
O diabo é que, diferentemente das novas fronteiras ideológicas a que o PT se vê submetido, a estrutura do Estado é inelástica. No instante em que encostar o abdômen no balcão, Lula terá dificuldades para saciar tantos e tão variados apetites. É um tipo de fome que não se mata com paz e amor.


Texto Anterior: Ciências sociais: Eleição presidencial pauta encontro anual da Anpocs
Próximo Texto: Elio Gaspari: O olhar tardio da segurança


Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.