São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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ELIO GASPARI

O olhar tardio da segurança

O doutor Pedro Parente ficou encarregado de cuidar da transição. Amanhã de manhã, ao chegar ao Planalto, pode determinar o congelamento de duas contratações que estão em marcha no próprio Gabinete Civil. O governo está prestes a comprar um circuito fechado de televisão e um sistema de controle do acesso a áreas restritas para os palácios do Planalto e da Alvorada. Coisa de R$ 660 mil. Se ninguém parar a carruagem, os burocratas de FFHH comprarão um sistema de vigilância que só começará a funcionar no governo de seu sucessor. Com seu conhecimento da maldade política, FFHH deve estar desatento. Sua biografia nada tem a ver com esse tipo de coincidência. Coisa assim: quando ele ia saindo, mandou comprar câmeras para filmar o palácio.
Planeja-se instalar 71 câmeras no Planalto. Além de vigiar corredores, portas e cantos, estarão ligadas a uma central capaz de receber sinais e dar alarmes. Coisa de primeira. Em alguns casos pode-se fazer com que a câmera passe seu olhar por uma porta, mas só dê alarme se houver algum movimento estranho na direção da maçaneta.
O sistema de controle do acesso a 30 áreas restritas funcionará também no Alvorada, no Jaburu e na Granja do Torto. Coisa mais simples, limita-se a proteger armários e centrais telefônicas. Trabalha com sensores e é uma primeira instância contra grampos.
O sistema de segurança da Presidência da República é jurássico. O principal instrumento de controle da circulação interna são pequenos adesivos coloridos, colocados no paletó das pessoas. Fica abaixo dos níveis de segurança de algumas grandes empresas brasileiras. Tanto as câmeras quanto os sensores podem ser necessários, mas o atual governo viveu muito bem durante oito anos sem essas geringonças. Pensou em fazer essas compras em 1997, mas faltou dinheiro. Agora, que abundam desempregados e o governo está pela bola sete, a despesa foi considerada necessária.
É possível que a idéia do governo esteja errada. Fica difícil entender por que se abrem duas licitações para dois sistemas complementares que deverão funcionar num mesmo palácio. Basta uma pequena distração com a compatibilidade e as compras viram sucata em dois anos.
O doutor Parente está na sua cadeira há três anos. Não viu urgência na compra da traquitana. Pode tomar todas as providências preliminares, encadernar os processos e deixá-los sobre a mesa, para que seu sucessor decida assiná-los. É muito mais econômico e, sobretudo, civilizado.

Os jagunços encantados de Canudos

Guimarães Rosa ensinou: as pessoas não morrem, ficam encantadas. Encantados, os jagunços de Canudos continuam vingando-se. Voltaram ao mundo na obra-prima de Euclides da Cunha, reapareceram num romance escrito por um húngaro que nunca viu o Brasil. ("Veredicto em Canudos", de Sándor Márai.) Estão até numa biografia romanceada de D. Pedro 2º, escrita por um banqueiro francês. ("O Defensor Perpétuo, Escrúpulos de um Imperador", de Jean Soublin.) Agora, graças à obstinada erudição do historiador Marco Antonio Villa, vai para as livrarias "Canudos, História em Versos", um dos maiores poemas da literatura brasileira (5.984 versos, contra cerca de 7.000 do "Caramuru", de Santa Rita Durão).
Seu autor chama-se Manuel Pedro das Dores Bombinho. Sabe-se que nasceu em Sergipe entre 1860 e 1870. Morreu na década de 40, aos 81 anos, na Bahia. Foi ourives, delegado e rábula. Organizou uma filarmônica municipal e tornou-se tropeiro da expedição que destruiu Canudos, em 1897. Terminada a luta, voltou para Sergipe e escreveu sua obra. Concluiu-a em 1898. O manuscrito foi parar na biblioteca pública estadual.
A existência do poema de Bombinho foi revelada em 1969 pelo repórter Nertan Macedo. Alguns abnegados professores (João dos Santos Filho, de Maringá, e Luís Antonio Barreto, de Aracaju) copiaram-no. Sorte dos jagunços encantados, porque o manuscrito da biblioteca foi roubado, talvez antes de 1995, num escândalo cultural convenientemente abafado.
O poema de Bombinho estava inédito. Vale mais como documento do que como literatura. É de Bombinho a primeira referência à degola dos jagunços aprisionados, meses antes da queda do arraial.
Bombinho traz para a cena a figura de Josefa Maria de Jesus, rica e casada senhora do sertão, que se mudou para Canudos e viveu em estado de santidade, dando esmolas e conselhos. Morreu parindo, no crepúsculo do arraial. Bombinho descreve o extermínio dos jagunços (que Euclides da Cunha ficou devendo) e narra a cena de uma mulher ao se ver separada do marido sabendo que iam degolá-lo:

"Sou conselheirista e quero sim
Morrer sem ser republicana
Degolem, não é a vossa missão?
Degole a uma heróica baiana".

A edição de "Canudos, História em Versos" só foi possível pelo interesse de uma editora (Hedra) e duas instituições públicas, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e a Editora da Universidade Federal de São Carlos. É exemplo do bom destino de verbas da Viúva para iniciativas editoriais necessárias e deficitárias.

Poesia: Manuel Pedro das Dores Bombinho

Versos de Bombinho, dando voz a Antônio Conselheiro. Seus títulos foram inventados agora, pelo signatário. Num dia de eleição, mostram a atualidade do poema ou a eternidade dos problemas:

(Risco Brasil)

"E agora direi por que
O governo da nação
Sem ter a mínima razão
Trata do povo avexar
Manda imposto cobrar
Só para ter dinheiro
E já o povo estrangeiro
Não quer nele confiar"

(Dólar a R$ 3,80)

"Prestem bem atenção
O câmbio tem alterado
De maneira tem baixado
Que ninguém pode comprar
Nem o pobre mercadejar
Os gêneros todos subiram
Os lucros todos fugiram
Para o rico só ganhar".

Será que dá?

O consultor João Guilherme Vargas Netto esclarece: o vencedor da eleição de hoje precisa de 54.455.076 votos para se tornar a pessoa mais votada em eleição livre em toda a história da humanidade.
Com 51 milhões de votos, o eleito de hoje bate a votação de Albert Gore, mas fica atrás da consagração obtida por Ronald Reagan em 1984. Ela lhe deu 54.455.075 votos.

Escrita (1)

De um conhecedor da formação de pelo menos cinco ministérios em início de governo:
O novo presidente não sabe, mas quando tiver terminado as escolhas, descobrirá que seguiu uma tradição.
Um terço dos ministros serão pessoas que ele tinha pensado em colocar exatamente nos lugares onde elas ficaram.
Outro terço serão pessoas que ele queria colocar num lugar e acabaram em outro.
O terço restante é de pessoas que ele não tinha pensado em colocar no ministério. Nesse grupo está sempre uma pessoa que ele nomeia sem ao menos conhecer.

Escrita (2)

Durante a formação do primeiro ministério de um governo fazem-se algumas das principais antipatias dos quatro anos seguintes.
Exemplo: a hostilidade do professor Paulo Renato Souza contra José Serra.
Cicatrizes desse tempo demoram a fechar, quando fecham.

Saudades de FFHH

Os procuradores Manoel Pastana e Celso Três, que investigam a campanha eleitoral da governadora petista Dalva Figueiredo, do Amapá, reclamam do presidente do PT, José Dirceu. O companheiro ligou para o procurador-geral Geraldo Brindeiro, protestando contra o que considera uma militância de Pastana e Três em prejuízo da petista, que disputa a reeleição.
Com a palavra o procurador Celso Três, falando à repórter Kátia Brasil:
"Nós somos independentes, e o Dirceu não pode se meter no nosso trabalho. Ele quis fazer uma intervenção. (...) Nós estamos todos dias ferrando o governo, metendo ação contra o Fernando Henrique, e nunca aconteceu isso".
Se, em vez de telefonar para Brindeiro (que um petista apelidou de "engavetador-geral"), José Dirceu tivesse convocado uma entrevista coletiva, o caso não teria importância alguma. Seria o jogo jogado.

ENTREVISTA

Heloísa Buarque de Hollanda

(62 anos, co-autora do livro "Patrulhas Ideológicas", professora de Teoria da Cultura da UFRJ, diretora da Editora Aeroplano)

-Quando uma opinião deixa de ser crítica e passa a ser patrulha?
-A crítica mexe, movimenta o debate. Uma pessoa diz o que acha, a outra ouve, pensa e responde. A patrulha congela. Veja o que aconteceu com os Centros Populares de Cultura, aqueles que a UNE montou nos anos 60. Desde aquela época, a proposta dos CPCs é criticada. Ao mesmo tempo, eram patrulhados: "Coisa de comunista". Aí, em 1964, puseram fogo na UNE. Uma coisa é crítica, outra é patrulha. Você tem outro exemplo no Nelson Rodrigues. Enquanto ele viveu, foi patrulhado. Pela direita, sobretudo a cristã, e pela esquerda, sobretudo o Partido Comunista. Quando morreu, passaram a criticá-lo e viu-se o gênio literário que o Brasil poderia ter conhecido melhor. Quer saber? Eu acho que sair dizendo que "Cidade de Deus" é uma exploração da pobreza é patrulha. É uma crítica que não encorpa o debate.
-A senhora acha que essa eleição presidencial está muito patrulhada?
-Não, de jeito nenhum. É uma eleição livre, num ambiente livre. O que há é o jogo eleitoral. No campo da política, houve uma disputa do Lula com o Serra, mas no mundo do jogo, que em certos momentos prevaleceu, houve muito mais uma disputa do Duda Mendonça com o Nizan Guanaes. Teve gente que participou da briga do Duda com o Nizan pensando que estava na disputa do Serra com o Lula.
-Quem patrulha mais, a esquerda ou a direita?
-A esquerda, de longe. A patrulha tem um irmão gêmeo, que é o silêncio. Quando ele não funciona, ela entra em ação, massacrando. Veja o caso da Rachel de Queiroz. Ficou sem crítica por mais de 20 anos, só porque apoiou o governo do marechal Castello Branco. O José Guilherme Merquior é patrulhado até hoje. Fala-se mal dele na rua, não se escreve nada a seu respeito e, sempre que se pode, enfia-se que ele foi um dos inspiradores do Collor. A patrulha de esquerda, além de poderosa, sempre tem propósitos. A patrulha de direita é sempre política, exposta, caricata e vulgar. Descamba para a censura. Nunca vi um bom patrulheiro de direita.

Valentia

O presidente do Banco Central, Armínio Fraga, decidiu conduzir pessoalmente a transição dentro do Banco Central. Não lhe passou pela cabeça transferir esse serviço para um diretor.

Erro

Mauryas de Castro Manzoli corrige a informação segundo a qual os nove volumes dos "Textos Políticos da História do Brasil" estão disponíveis em meio magnético, num CD. Os CDs, informa, são um meio digital óptico.


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