São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

QUESTÃO INDÍGENA
Por orientação de agenciadores de mão-de-obra, trabalhadores se recusam a ter carteira assinada
Desemprego atinge 4.000 índios no MS


RUBENS VALENTE
da Agência Folha, em Brasilândia

Cerca de 4.000 índios guaranis e terenas começam o ano no Mato Grosso do Sul sem emprego, pois se recusam, por orientação de seus líderes, a ter suas carteiras de trabalho assinadas nas usinas de álcool do Estado. Se os índios tiverem a sua carteira assinada, os agenciadores de mão-de-obra para as fazendas, índios ou não, deixam de ganhar comissões.
Da mão-de-obra contratada nas nove usinas do Estado até 97 -entre 4.400 e 4.500 trabalhadores-, 90% está desempregada hoje.
Foi a partir de 1997 que os índios começaram a deixar os canaviais, em decorrência de blitze e ações judiciais inéditas movidas pelo Ministério Público do Trabalho, que exigia o registro em carteira.
A partir de janeiro, o grupo alagoano J. Pessoa, que possui duas usinas no Estado e produz 160 milhões de litros de álcool por ano -cerca de 30% da produção estadual de 528 milhões de litros-, deixa de empregar 1.100 índios na destilaria Debrasa, em Brasilândia (350 km de Campo Grande). Esses trabalhadores prestavam serviços à empresa desde 1993.
"A tragédia é que esse pessoal não terá o que fazer, pois não terá renda. Ninguém, fora as usinas, dá emprego ao índio", disse o gerente-geral da usina Debrasa, João de Chagas Neto, 48.
Apenas uma empresa, a Santa Olinda, anunciou que vai continuar empregando cerca de 400 índios sem carteira, amparada por uma liminar judicial.
Para a empresa, empregar trabalhadores indígenas possibilita menores custos.
As ações judiciais que proíbem as usinas de contratar os índios sem carteira assinada (como faziam em comum acordo com a Funai e com lideranças indígenas, resultou de um longo inquérito civil instaurado em 1993.
As usinas pagam aos líderes indígenas uma "taxa comunitária" de 20% do valor do contrato. Segundo cálculo da Funai (Fundação Nacional do Índio) , essa taxa representa cerca de R$ 82 mil por ano para as aldeias.
O pagamento -feito de forma adiantada- foi criado para bancar compromissos que a Funai não vem cumprindo, como o conserto de máquinas agrícolas e a compra de remédios e combustíveis nas aldeias.
Os chamados "cabeçantes", índios que fazem o papel de agenciador de trabalhadores, também tinham tratamento diferenciado, recebendo em média 15% sobre o valor do contrato, enquanto o agenciador não-índio, o "gato", recebe de 5% a 8%.
Os líderes e "cabeçantes" foram os primeiros a reclamar das exigências da Justiça trabalhista e decidiram orientar os índios a não aceitar o serviço com carteira.
² Cestas básicas
Eles dão essa orientação mesmo que isso agrave a situação social nas aldeias, que já convivem com o alcoolismo e o fenômeno dos suicídios entre os guaranis (280 mortos em nove anos).
Muitas aldeias agora vivem das cestas básicas do programa Comunidade Solidária.
"Sem a taxa comunitária, nós (líderes) passamos vergonha, somos cobrados pela comunidade e não temos dinheiro para resolver os problemas da aldeia", disse o líder terena da aldeia Lagoinha, em Aquidauana (110 km de Campo Grande), Paixão Delfino, 66.
Os índios estão sendo rapidamente substituídos por nordestinos e mato-grossenses.
"É muito fácil arrumar mão-de-obra hoje. A gente anuncia e em dois dias aparecem 500 pessoas", disse o gerente agrícola da usina Sonora, Cleiton Jarbas Valeis, 41, que desde 98 deixou de empregar 1.200 índios.
O procurador do trabalho Emerson Marim Chaves, 27, disse que a falta de carteira deixava o índio sem proteção trabalhista.
"O índio que trabalha na usina já está perdendo suas tradições. Assim, deve ser tratado e protegido como um "branco'."
O administrador da Funai em Campo Grande, Lísio Lili, índio terena, reconhece a gravidade da situação e tenta encontrar uma solução jurídica que permita que os índios continuem trabalhando sem carteira assinada.
O Estado do Mato Grosso do Sul possui cerca de 50 mil índios e está na segunda posição em população indígena no país, perdendo apenas para o Amazonas.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.