São Paulo, segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

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ENTREVISTA/RUBENS RICUPERO

Abertura dos portos foi primeiro passo do país rumo à globalização

Ex-ministro diz que ato de dom João 6º, que encerrou mais de 300 anos de colônia, foi "a primeira medida provisória do país'

FERNANDO BARROS DE MELLO
DA REDAÇÃO

A ABERTURA dos Portos às Nações Amigas foi assinada pelo então príncipe regente d. João 6º em 28 de janeiro de 1808. Nos 200 anos da data, o embaixador e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero diz que o ato foi o primeiro passo do Brasil rumo à globalização. Ricupero, que acaba de organizar o livro "A Abertura dos Portos" (Senac), fala sobre a influência inglesa, que culminou nos privilégios dos "Tratados Desiguais", de 1810, e compara o passado com a OMC e a Alca.

FOLHA - Que conseqüências práticas a abertura trouxe ao Brasil?
RICUPERO
- Até 1808, o Brasil tinha superávit no comércio externo; a partir daí, passa a ter déficit sempre. A abertura foi um passo da globalização brasileira. É a estréia dela, já que o espírito da globalização é a abertura dos mercados. Mas sempre me impressionou um paradoxo sobre a abertura: ninguém duvida da sua importância capital, mas raros lhe dedicam mais do que quatro ou cinco linhas ao episódio em si. A maioria dos brasileiros acredita que 1808 foi uma imposição da Inglaterra, o que não é verdade.
Estão circulando agora livros agradáveis, mas errôneos, que dizem que abertura já tinha sido comprometida em um tratado secreto antes da partida. Em outubro de 1807, houve uma convenção secreta assinada em Londres, mas o artigo sobre portos foi vetado. Um grupo queria resistir a dar o privilégio.

FOLHA - Qual foi o papel inglês?
RICUPERO
- É preciso levar em conta a hegemonia da Inglaterra, especialmente sobre Portugal. Mas os ingleses não estavam presentes na decisão, não era o que eles queriam. Tanto que conseguiram alterar dois anos depois. Em 11 de junho de 1808, o governo português baixou decreto pelo qual tarifas incidentes em portos brasileiros sobre mercadorias transportadas em navios lusos foram reduzidas de 24%, estabelecidos pela abertura sobre todos os "gêneros secos" de todos os países, para 16%. Indignada, a Inglaterra protestou energicamente. As negociações foram concluídas pela assinatura, em 19 de fevereiro de 1810, dos diversos pactos passados à história com o nome de "tratados desiguais". Foi fixado o direito de cobrar das mercadorias inglesas 15%. Por oito meses, foi menor a taxa aos ingleses do que para os próprios portugueses.
Portanto, a Inglaterra conseguiu o que queria em 1810. A abertura de 1808 foi extremamente importante, mas criou um regime fugaz que, curiosamente, corresponde ao espírito puro do capitalismo do [economista escocês, autor de "A Riqueza das Nações"] Adam Smith: um regime totalmente aberto a todos.
Do ponto de vista legal, com a abertura tinha se criado uma situação que é o ideal da Organização Mundial do Comércio. A OMC deseja como ideal um mundo aberto à concorrência de todos os países em condições igualitárias. O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, o Gatt, até hoje a constituição da OMC, tem dois primeiros artigos semelhantes ao decreto de 1808. Mas foi um regime fugaz.

FOLHA - O sr. diz que José da Silva Lisboa, que seria nomeado visconde de Cairu, é um dos protagonistas da abertura. Qual foi seu papel?
RICUPERO
- O Lisboa era uma combinação curiosa, muito liberal em economia, leitor e tradutor de Adam Smith, mas muito conservador em política. Um documento importante, de 27 de janeiro, é a representação do comércio e da agricultura de Salvador a d. João que pede a abertura dos portos. Pelo menos oficialmente, é o gatilho que vai desencadear a decisão. É como se fosse um documento da Fiesp na época: homens de negócio da Bahia, por intermédio do governador, pedem que se permita a saída de navios. Eles estavam preocupados com a exportação. Aí entra um segundo documento.

FOLHA - Qual?
RICUPERO
- É um memorando, que não é datado, que parece ter sido escrito pelo marquês de Belas, espécie de secretário da corte, durante a viagem. Ele diz que é preciso fazer a medida dos portos antes de se chegar ao Rio. Na sugestão dele já existe esse pensamento. Ele diz que tem que ser abertura sem privilégio a nenhuma nação, do contrário seria escravidão.
É possível reconstituir que a medida já vinha amadurecida pelo grupo político que dominava. Mas eles não sabiam bem como fazer. Ao chegar à Bahia, vão encontrar o clamor dos comerciantes, do governador e um tecnocrata extraordinariamente qualificado para dar forma à decisão. Esse é o papel do Cairu: é o homem que dá aos poderosos a técnica para fazer aquilo que, no fundo, eles queriam fazer. Os ministros pró-britânicos nem os ingleses estavam lá naquele momento.
Em geral, se considera algo casual. Mas d. João devia ir para o Rio, só que a esquadra foi dispersada perto da ilha da Madeira. As conseqüências foram que os ministros principais não estavam com o príncipe. O futuro rei vai parar em um porto importantíssimo em termos de receita -a Bahia era um grande exportador de açúcar. A grande relevância da abertura dos portos é que ela representa a modernização do processo de inserção internacional, mas uma modernização conservadora, porque a estrutura da produção não muda. O que mudou é que antes o Brasil era uma colônia de uma colônia.

FOLHA - Que lições a abertura dos portos traz para o presente?
RICUPERO
- A grande lição diz respeito às negociações comerciais. Primeiro, é preciso entender que 1808 foi modificado em 1810, com os tratados desiguais que privilegiaram a Inglaterra.
Não é que eu acredite que Portugal pudesse ter dito não à Inglaterra, mas não utilizou a margem de manobra que havia nas instruções. Havia uma margem que Portugal poderia ter aproveitado para resistir, e não aproveitou. Foi uma negociação desastrosa: os tratados desiguais foram muito além do que deveriam. A idéia de que a vontade humana pode tudo é um erro, mas ela pode alguma coisa. O tratado de 1810, de certa forma, é uma revogação da abertura. Nós não exercemos o espaço que tinha para a vontade, o espaço de negociação para o Brasil. No caso da Alca, o governo exerceu melhor isso.
O Brasil também negocia em posição inferior, há um diferencial de poder quando negocia com os EUA. Mas dentro desse diferencial de poder há uma margem para se negociar. Vejo três analogias entre os tratados desiguais que os ingleses impuseram e a Alca, tal como os americanos impuseram a outros países, e não ao Brasil.

FOLHA - Que paralelos?
RICUPERO
- Tanto num caso como noutro se fala em liberdade de livre comércio, mas ingleses e americanos queriam direitos preferenciais, isto é, uma tarifa mais favorável a eles.
A segunda analogia é a ausência de reciprocidade real. Os ingleses passavam a ter um acesso privilegiado ao mercado brasileiro, mas os produtos brasileiros principais, o açúcar e o café, que concorriam com os da Jamaica, tinham a importação direta proibida. O Brasil sempre comprou muito da Inglaterra, e ela, pouco do Brasil. Na Alca também não tem reciprocidade. Os grandes produtos brasileiros de exportação os EUA não aceitam nem negociar: suco de laranja, etanol, açúcar, tabaco, carnes em geral.
A terceira analogia é a jurisdição especial. Uma das humilhações maiores que o Brasil sentiu com os ingleses foi a imposição da Justiça inglesa. Qualquer caso que afetasse um cidadão inglês, mesmo que matasse uma pessoa no Brasil, tinha que ser julgado não pela Justiça comum, mas por um magistrado que os ingleses elegiam. Esse tipo de jurisdição especial a Alca prevê, pois diz que os investidores que se sentem prejudicados por qualquer decisão do governo que diminua os benefícios que eles esperavam no momento que investiram podem processar o Estado numa corte arbitral fora do Brasil. Algo inacreditável.


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