São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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ARTIGO

O PT, Dirceu e o risco da gangrena

RUY FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A revelação de um caso de suborno envolvendo um assessor importante do ministro da Casa Civil desencadeou um vendaval na política brasileira, cujas conseqüências continuam se fazendo sentir. O fato é da maior gravidade, mas por isso mesmo a sua descoberta poderia ter tido resultados positivos. Entretanto, dada a reação do governo e de seus defensores, mas também dado o estilo de uma parte dos ataques, não há motivos para otimismo, mas para inquietude.
O que há de negativo nessas reações é o excesso na crítica, por parte de alguns dos opositores (embora, tudo somado, o barulho da mídia seja positivo) e certamente excesso na defesa por parte do governo e de seus partidários. De um lado, uma ofensiva como raramente se viu na mídia brasileira: fala-se em "lodaçal moral" (e a ausência de precisões sugere que ele atinge todo o governo e, no tempo, toda a gestão Lula); compara-se, mesmo se hipoteticamente, Lula a Collor.
E já anteriormente às revelações, falava-se em "estelionato eleitoral". Do outro lado, se faz tudo para jogar a sujeira embaixo do tapete. Argüi-se que o ministro se enganou com o seu assessor como todo mundo se engana, insiste-se sobre a ocasião meio "longínqua" do evento, ou sobre a condição de não-petista do acusado. E faz-se tudo para evitar que se constitua uma CPI .
No primeiro caso, há excesso, não porque as revelações não tenham gravidade, mas porque se perde de vista que se, ao que parece, há "lodo", o que por si só diz muito, ele certamente não atinge o conjunto do governo nem no tempo nem (por ora) no "espaço", o que também deve ser levado em conta. E mais: se coisas muito desagradáveis existem, elas coexistem com uma prática de governo (até aqui) com certas qualidades em termos de competência, honestidade e responsabilidade por parte de um número importante de ministérios.
Não vou dar nomes. Mas examinem as equipes que estão nos ministérios (quatro exemplos: Relações Exteriores, Minas e Energia, Meio Ambiente e Educação, mas há bem mais do que isto), compare a qualidade das equipes e, em vários casos, o que já foi feito, com as figuras e os balanços dos ministérios correspondentes dos governos anteriores que o Brasil já teve. Ver-se-á que, até aqui (até o "evento", exclusive), o governo Lula não se sai mal, mesmo se, para alguns casos, só em termos de um início de trabalho, já que o primeiro ministério tinha pontos muito fracos.
Entre outras coisas, eu diria que hoje, em termos de qualidade das equipes, mas não só isso, esse governo é melhor, em geral, do que o governo Fernando Henrique Cardoso, o qual, diga-se de passagem, apesar dos seus graves erros, não foi, como se pretendeu, "o pior governo que o Brasil já teve". Mas o lado bom do governo Lula coexiste com um lado sombrio, que os seus defensores querem ocultar ou atenuar. Ora, se a corrupção não for combatida a fundo, haverá gangrena e nenhum bom ministério poderá compensá-la ou resistir a ela.
Tentemos repensar o conjunto do processo. De um modo geral, o PT apareceu como um partido de esquerda sui generis, nascido a contra corrente dos partidos de esquerda oficiais. Ele defendia uma linha não muito bem definida, mas bastante radical, afinada de alguma forma com uma perspectiva que não rejeitava as soluções revolucionárias. Pelo menos essa era a perspectiva de uma boa parte dos militantes. No plano da prática política imediata, condenava os acordos políticos e tinha, pelo menos aparentemente, uma atitude bastante intransigente no que se refere à corrupção.
Hoje os adversários da atual política do governo petista, sejam eles da extrema-esquerda, mas também, o que é surpreendente, os de centro ou centro-direita, tendem a idealizar esse PT do passado. Trata-se de mostrar as qualidades reais ou supostas do antigo PT, para realçar a gravidade da sua queda atual. Ora, uma análise mais cuidadosa e objetiva desse velho PT mostra que, nele, nem tudo era bonito. Mais do que isso. Quaisquer que fossem os méritos do partido, e estes não eram pequenos (digamos que ele era o partido que melhor encarnava as aspirações populares), a sua ideologia tinha o inconveniente de ser "revolucionarista", simplista, mítica mesmo, sob muitos aspectos.
E um ponto que gostaria de ressaltar: a separação entre o lado negativo do PT, que seria o seu revolucionarismo, e o lado positivo, a intransigência diante da corrupção, é em parte, ou potencialmente, enganosa. É verdade que a corrupção diminuiu muito, com a chegada do PT ao poder em vários municípios e isso marcou época. Mas o radicalismo revolucionário, tanto no Brasil como fora dele, nem sempre foi infenso à corrupção. O governo fidelista que o PT tanto apreciava e que, infelizmente, parece que ainda aprecia, andou negociando em proveito próprio com o narcotráfico (ver, a propósito, a liquidação de Ochoa e Laguardia, bodes expiatórios das aventuras fidelistas em matéria de "comercio" internacional). Da guerrilha colombiana, que alguns no PT, ao que parece, apreciavam (nesse ponto, houve felizmente evolução), não é preciso falar muito. Trata-se de guerrilha e de alta corrupção.
Por outro lado, as revelações que transpiraram do caso Celso Daniel parecem indicar que pelo menos algumas das pessoas suspeitas de atos escusos se apoiavam em velhas práticas revolucionárias e antigas justificações políticas da expropriação dos burgueses... Isso para mostrar que é falso supor que hiper-radicalismo e honestidade administrativa vão sempre juntos. Porém, mesmo que o PT tenha sido exemplar no passado, não seria válido agravar o caso atual, já em si mesmo muito grave, por causa desse passado, como se faz hoje de uma maneira um pouco fácil.
Como é sabido, e se repete à saciedade, o PT mudou. A propósito dessa mudança, é importante salientar três coisas. Primeiro, contra a idealização bem ou mal intencionada do passado, é preciso dizer que (até a presente crise) ele mudou em geral para melhor. Isso a extrema-esquerda nunca quis entender e, com suas fórmulas de uma outra época e o seu corporativismo (embora tenha acertado na sua alergia a certos ministros), dificultou o processo de mutação do PT. Segundo, o principal dessas mudanças vem antes, não depois das eleições, o que permite descartar a tese falsa do "estelionato eleitoral".
Para uma parte dessas mudanças (visão mais positiva da democracia representativa, por exemplo), a mutação ocorreu, mesmo, antes do ano da campanha. O terceiro ponto é que alguma coisa do lado negativo da mutação (porque há também o outro lado, e esse é o nosso problema), já aparece antes da eleição de Lula. Assim, por exemplo, durante a campanha, Lula começou a fazer o elogio de certo homem político de honestidade duvidosa, para não dizer mais. Porém, Lula e o PT não foram longe nessa direção. E com a escolha de Alencar como candidato à Vice-Presidência, o PT não vendeu a alma.
Houve uma nova mudança, esta após as eleições. Como se sabe, ocorreu, em primeiro lugar, no plano da política econômica. Diante da ameaça de um processo inflacionário que se esboçou por causa do resultado das eleições e também pelo terrorismo em torno da vitória de Lula praticado por pefelistas e tucanos, o governo decidiu aceitar de imediato uma taxa de juros alta (que, depois foi reduzindo, pouco a pouco), e adotar um superávit ainda maior do que o exigido pelo FMI, o que comprometeu as possibilidades de relançar imediatamente o crescimento econômico.
Precisemos. Essa política tem continuidade com a política final do governo Cardoso (mesmo assim, como assinalava um jornalista econômico, há diferenças), mas o problema é que a política final da gestão Cardoso não dá a essência do que foi o conjunto da política econômica daquele governo. Passou-se facilmente da tese dessa continuidade (ela mesma incompleta), com a política econômica final da gestão anterior, à tese da igualdade entre as duas. Afinal o PT não promoveu a privatização selvagem (criticada quase unanimemente quanto à forma e, ao que parece, desastrosa quanto ao conteúdo) a que procedeu o governo anterior, que era aliado do partido que melhor encarna a direita, em termos políticos, e melhor reflete os objetivos dos bancos, em termos de interesses econômicos, o PFL.
O que o governo petista fez foi continuar as medidas que tomara o antigo governo para evitar a catástrofe, ameaça pela qual esse mesmo governo anterior parece ter sido em parte o responsável. E o fez também levando em conta os efeitos da onda de terror ampliada pelos seus adversários. Quero dizer com isso que a política econômica do PT se justifica. Com todas as precauções que opinar em campo tão técnico exige (Merleau-Ponty escreveu, aproximadamente, que para opinar em política -eu diria, em política econômica- é ser obrigado a falar de coisas a respeito das quais os não-especialistas que somos só podem ter evidências indiretas), se a política econômica do PT era justificável no primeiro momento, ela foi errada depois, porque se imobilizou numa prudência excessiva.
Porém um erro desse tipo, erro que, se ouso dizer, é certamente de boa-fé, e que em parte tem raízes na herança econômica e política -inclusive o "terror"- anti-Lula deixada pela oposição (o tema da "herança maldita", de que se abusou, tem alguma verdade), não justifica de forma alguma o termo pomposo e ultraviolento de "estelionato político". Crê-se seriamente que Lula e Palocci sejam "estelionatários", o que significa "escroques" da política? É dizer demais e mal.
Se esse é o diagnóstico que se deveria fazer da política econômica do PT, o que dizer da sua prática política (antes dos acontecimentos recentes)? Lula eleito, e o PT não tendo maioria absoluta, foi preciso fazer alianças. Com relação ao problema das alianças, observaria que é absurdo supor, como supõe a extrema-esquerda, e por isso sua crítica é estéril, que toda aliança com partidos que não se apresentem como sendo de "esquerda" seja a proscrever (a observar "en passant" entre os partidos e grupos ditos de esquerda há, por exemplo, partidos neo-maoístas ou grupos neo-stalinistas, o que complica ainda mais o problema). Porém, também é falso afirmar que qualquer aliança é válida.
A meu ver, a propósito das alianças seria preciso afirmar o seguinte. Alianças podem e nas condições atuais do Brasil têm de ser feitas. Mas elas têm limites. Mais precisamente, têm um duplo limite, que poderíamos tentar definir, apesar das dificuldades que oferece, no caso, uma definição de ordem geral. Há um limite politico e um limite ético. Sobre esses dois aspectos, a regra deveria ser: são vedadas em termos absolutos as alianças com grupos, partidos ou indivíduos claramente reacionários, ou notoriamente corruptos. Os dois advérbios são excessivamente vagos. Não tanto. Exemplos de alianças ilegítimas. Para o primeiro caso, alianças com o PFL, como a que fez o PSDB. Para o segundo caso, alianças com certo político do PMDB paulista, como, há pouco, ameaçava fazer o PT. Com os demais grupos, partidos e homens políticos, a validade das alianças depende de quem se trata e, se houver concessão recíproca, troca de "poderes", depende do que se oferece, do que se obtém, e das condições em que se oferece e se obtém.
Fora os casos que assinalei, não há regras absolutas. Cada caso é um caso e deve ser julgado como tal. Há suspeita de que o PSDB praticou ações desonestas por ocasião da reeleição de FHC. Isso é muito grave, mas a partir daí não dá para dizer que todo mundo no PSDB é corrupto e que toda aliança com políticos filiados a ele seja a proscrever. Depende de quem se trata, das condições. Considerando a situação anterior ao presente episódio e limitando-nos ao problema específico das alianças políticas (porque houve pelo menos um "caso tenebroso", ao qual irei me referir de novo, em seguida), até a crise recente, pelo menos na medida do que se sabe até hoje, não creio que o PT tenha feito nada de escandaloso no plano político nem no plano da honestidade administrativa (falo dos acordos e de suas conseqüências), mesmo depois da vitória ou que tenha traído a si próprio, como pretende a extrema esquerda.
Mas agora a situação se modifica. Estoura um grave caso de corrupção. Trata-se simplesmente da desatenção de um ministro, que se enganou ao escolher um assessor? Seria bom se fosse apenas isso. Infelizmente, as circunstâncias nos fazem pensar que a gravidade é maior. Esse não é o primeiro caso suspeito que envolve gente do PT. Houve pelo menos mais uma história grave, os fatos obscuros de Santo André, que culminaram com o assassinato do prefeito Celso Daniel. Há também as revelações de alguém que ocupara um posto importante no Ministério da Justiça, e que teria sido obrigado a sair por pressões vindas dos altos escalões do governo.
A acrescentar, agora, a reação desastrosa do PT, tentando pôr panos quentes e se aliando com o diabo para que, como se diz, tudo termine em "pizza". E, "last but not least", a atitude não menos desastrosa do ministro Dirceu, para o qual parece que nada aconteceu (uma pérola é a sua observação de que não tomou providências porque o próprio acusado já se encarregara disso...). Se juntarmos tudo o que se sabe nesses casos e em mais alguns outros, é difícil não concluir que, para além dos acordos que se fizeram, parece evidente que, nos bastidores, certos membros do PT enveredavam (e hoje visivelmente enveredam) por uma atitude comparável ao da política comum dos partidos políticos brasileiros, isto é, acham que ter abandonado o "revolucionismo" significa aceitar eventualmente qualquer tipo de aliança e, pelo menos, fechar os olhos para práticas escusas. Essa deriva vem assim de uma má leitura, se podemos dizer assim, do que significa a mutação do PT, mas também, como observei acima, e paradoxalmente, de um apego a formas antigas (o "revolucionismo" não é sempre honesto). O PT tem que encarar seriamente esse problema, em vez de concluir com alguns dos seus partidários, e alguns dos seus adversários, que as coisas são assim em política.
Ou o PT procede a uma verdadeira análise de consciência, e mais do que isso, a uma limpeza geral das suas práticas, ou a gangrena, é preciso dizer, será inevitável. Assim, é inadmissível que para evitar uma CPI, a qual, apesar dos riscos, deveria ser aceita, ele se amarre, de pés e mãos, a Sarney, a ACM, a Calheiros (e até a Roriz). O tipo de compromisso que se anuncia a partir do episódio da corrupção do assessor de Dirceu, é extremamente perigoso para o PT. O PT chega ao limite do que pode ou, antes, do que não pode um partido de esquerda. Lula não tem outra alternativa senão a da substituição de Dirceu. Só essa medida pode provocar um "sobressalto" no partido.
Seria pretensioso demais fazer propostas de programas ou de projetos, mas ousaria assinalar alguns pontos. 1) Uma questão que no momento parece secundária, mas é na realidade essencial: o PT deve tomar claramente distância em relação a todos os governos tirânicos ou ditatoriais, inclusive aqueles que se apresentam como governos de esquerda ou revolucionários (Observe-se que os críticos de extrema-esquerda que reclamavam da falta de democracia no PT não deram um pio a respeito. Nem, que eu saiba, os fundadores de novos partidos que se pretendem socialistas democráticos. Pronunciar-se contra as antigas democracias populares é fácil; quem seria a favor do câncer ou dos acidentes de automóvel? De resto, as tais "democracias populares" não existem mais. Quero saber o que eles pensam das ditaduras "de esquerda" que subsistem.) O ministro hoje na berlinda é um daqueles que parece ter mais "fraquezas" nessa área -quero dizer apenas que, contrariamente às aparências, a indulgência para com ditaduras "de esquerda" pode reforçar a indulgência para com gente eticamente duvidosa.
2) O PT deve aceitar a idéia de que, se alianças são necessárias, há dois limites para elas, um limite político e um limite ético (ver precisões mais acima).
3) O PT deve ter uma atitude absolutamente intransigente em relação a todos os casos de indulgência direta ou indireta para com práticas desonestas, por parte de gente ligada ao partido ou ao governo. A fortiori se houver mais do que "indulgência". É preciso complicar, não descomplicar as coisas, para salvar o partido e o governo. 4) É preciso rever a política econômica. As conversações com o FMI tendentes a mudar algumas das regras dos acordos representam uma boa notícia, desde que levem a algum resultado. Mas é preciso ter a coragem de correr um mínimo de riscos, reduzindo a taxa de juros e tomando outras medidas que facilitem a retomada do crescimento. Em tempo, exigências de mudança da política não devem servir de cortina de fumaça para encobrir percalços de natureza ética.
5) A curto ou médio prazo é preciso pensar em medidas redistributivas. Que o governo tenha empresários entre os seus ministros não é em si mesmo negativo. Aliás, os ministros empresários, à sua maneira, não têm andado mal. Mas será necessário que eles mostrem que são capazes de aceitar medidas redistributivas. Por exemplo, uma tabela de alíquotas do Imposto de Renda menos injusta para os menos ricos e que exija mais dos mais ricos. Há projetos de importância a desenvolver, como as cooperativas.
Mas desde já é preciso buscar uma saída clara para o impasse a que nos condena, de um lado, a "cara-de-pau" de raposas neófitas, e de outro, o narcisismo satisfeito de certos niilistas (refiro-me só a uma franja dos que atacam o governo) que escondem mal o quanto se regozijam com a catástrofe, e o quanto são parte dela.


Ruy Fausto, 68, filósofo, professor emérito da USP, é autor, entre outras obras, de "Marx - Lógica e Política" (Editora 34)


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