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ARTIGO
O PT, Dirceu e o risco da gangrena
RUY FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A revelação de um caso de suborno envolvendo um assessor
importante do ministro da Casa
Civil desencadeou um vendaval
na política brasileira, cujas conseqüências continuam se fazendo
sentir. O fato é da maior gravidade, mas por isso mesmo a sua descoberta poderia ter tido resultados positivos. Entretanto, dada a
reação do governo e de seus defensores, mas também dado o estilo de uma parte dos ataques, não
há motivos para otimismo, mas
para inquietude.
O que há de negativo nessas reações é o excesso na crítica, por
parte de alguns dos opositores
(embora, tudo somado, o barulho
da mídia seja positivo) e certamente excesso na defesa por parte
do governo e de seus partidários.
De um lado, uma ofensiva como
raramente se viu na mídia brasileira: fala-se em "lodaçal moral"
(e a ausência de precisões sugere
que ele atinge todo o governo e,
no tempo, toda a gestão Lula);
compara-se, mesmo se hipoteticamente, Lula a Collor.
E já anteriormente às revelações, falava-se em "estelionato
eleitoral". Do outro lado, se faz tudo para jogar a sujeira embaixo
do tapete. Argüi-se que o ministro
se enganou com o seu assessor como todo mundo se engana, insiste-se sobre a ocasião meio "longínqua" do evento, ou sobre a
condição de não-petista do acusado. E faz-se tudo para evitar que
se constitua uma CPI .
No primeiro caso, há excesso,
não porque as revelações não tenham gravidade, mas porque se
perde de vista que se, ao que parece, há "lodo", o que por si só diz
muito, ele certamente não atinge
o conjunto do governo nem no
tempo nem (por ora) no "espaço", o que também deve ser levado em conta. E mais: se coisas
muito desagradáveis existem, elas
coexistem com uma prática de
governo (até aqui) com certas
qualidades em termos de competência, honestidade e responsabilidade por parte de um número
importante de ministérios.
Não vou dar nomes. Mas examinem as equipes que estão nos
ministérios (quatro exemplos:
Relações Exteriores, Minas e
Energia, Meio Ambiente e Educação, mas há bem mais do que isto), compare a qualidade das
equipes e, em vários casos, o que
já foi feito, com as figuras e os balanços dos ministérios correspondentes dos governos anteriores
que o Brasil já teve. Ver-se-á que,
até aqui (até o "evento", exclusive), o governo Lula não se sai mal,
mesmo se, para alguns casos, só
em termos de um início de trabalho, já que o primeiro ministério
tinha pontos muito fracos.
Entre outras coisas, eu diria que
hoje, em termos de qualidade das
equipes, mas não só isso, esse governo é melhor, em geral, do que
o governo Fernando Henrique
Cardoso, o qual, diga-se de passagem, apesar dos seus graves erros,
não foi, como se pretendeu, "o
pior governo que o Brasil já teve".
Mas o lado bom do governo Lula
coexiste com um lado sombrio,
que os seus defensores querem
ocultar ou atenuar. Ora, se a corrupção não for combatida a fundo, haverá gangrena e nenhum
bom ministério poderá compensá-la ou resistir a ela.
Tentemos repensar o conjunto
do processo. De um modo geral, o
PT apareceu como um partido de
esquerda sui generis, nascido a
contra corrente dos partidos de
esquerda oficiais. Ele defendia
uma linha não muito bem definida, mas bastante radical, afinada
de alguma forma com uma perspectiva que não rejeitava as soluções revolucionárias. Pelo menos
essa era a perspectiva de uma boa
parte dos militantes. No plano da
prática política imediata, condenava os acordos políticos e tinha,
pelo menos aparentemente, uma
atitude bastante intransigente no
que se refere à corrupção.
Hoje os adversários da atual política do governo petista, sejam
eles da extrema-esquerda, mas
também, o que é surpreendente,
os de centro ou centro-direita,
tendem a idealizar esse PT do passado. Trata-se de mostrar as qualidades reais ou supostas do antigo PT, para realçar a gravidade da
sua queda atual. Ora, uma análise
mais cuidadosa e objetiva desse
velho PT mostra que, nele, nem
tudo era bonito. Mais do que isso.
Quaisquer que fossem os méritos
do partido, e estes não eram pequenos (digamos que ele era o
partido que melhor encarnava as
aspirações populares), a sua ideologia tinha o inconveniente de ser
"revolucionarista", simplista, mítica mesmo, sob muitos aspectos.
E um ponto que gostaria de ressaltar: a separação entre o lado negativo do PT, que seria o seu revolucionarismo, e o lado positivo, a
intransigência diante da corrupção, é em parte, ou potencialmente, enganosa. É verdade que a corrupção diminuiu muito, com a
chegada do PT ao poder em vários municípios e isso marcou
época. Mas o radicalismo revolucionário, tanto no Brasil como fora dele, nem sempre foi infenso à
corrupção. O governo fidelista
que o PT tanto apreciava e que,
infelizmente, parece que ainda
aprecia, andou
negociando em
proveito próprio
com o narcotráfico (ver, a propósito, a liquidação de
Ochoa e Laguardia, bodes expiatórios das aventuras fidelistas em
matéria de "comercio" internacional). Da guerrilha colombiana,
que alguns no PT,
ao que parece,
apreciavam (nesse ponto, houve
felizmente evolução), não é preciso
falar muito. Trata-se de guerrilha e
de alta corrupção.
Por outro lado,
as revelações que
transpiraram do
caso Celso Daniel parecem indicar que pelo menos algumas das
pessoas suspeitas de atos escusos
se apoiavam em velhas práticas
revolucionárias e antigas justificações políticas da expropriação
dos burgueses... Isso para mostrar
que é falso supor que hiper-radicalismo e honestidade administrativa vão sempre juntos. Porém,
mesmo que o PT tenha sido
exemplar no passado, não seria
válido agravar o caso atual, já em
si mesmo muito grave, por causa
desse passado, como se faz hoje
de uma maneira um pouco fácil.
Como é sabido, e se repete à saciedade, o PT mudou. A propósito dessa mudança, é importante
salientar três coisas. Primeiro,
contra a idealização bem ou mal
intencionada do passado, é preciso dizer que (até a presente crise)
ele mudou em geral para melhor.
Isso a extrema-esquerda nunca
quis entender e, com suas fórmulas de uma outra época e o seu
corporativismo (embora tenha
acertado na sua alergia a certos
ministros), dificultou o processo
de mutação do PT. Segundo, o
principal dessas mudanças vem
antes, não depois das eleições, o
que permite descartar a tese falsa
do "estelionato eleitoral".
Para uma parte dessas mudanças (visão mais positiva da democracia representativa, por exemplo), a mutação ocorreu, mesmo,
antes do ano da campanha. O terceiro ponto é que alguma coisa do
lado negativo da mutação (porque há também o outro lado, e esse é o nosso problema), já aparece
antes da eleição de Lula. Assim,
por exemplo, durante a campanha, Lula começou a fazer o elogio de certo homem político de
honestidade duvidosa, para não
dizer mais. Porém, Lula e o PT
não foram longe nessa direção. E
com a escolha de Alencar como
candidato à Vice-Presidência, o
PT não vendeu a alma.
Houve uma nova mudança, esta
após as eleições. Como se sabe,
ocorreu, em primeiro lugar, no
plano da política econômica.
Diante da ameaça de um processo
inflacionário que se esboçou por
causa do resultado das eleições e
também pelo terrorismo em torno
da vitória de Lula
praticado por pefelistas e tucanos,
o governo decidiu
aceitar de imediato uma taxa de juros alta (que, depois foi reduzindo, pouco a pouco), e adotar um
superávit ainda
maior do que o
exigido pelo FMI,
o que comprometeu as possibilidades de relançar
imediatamente o
crescimento econômico.
Precisemos. Essa política tem
continuidade com
a política final do
governo Cardoso
(mesmo assim,
como assinalava
um jornalista econômico, há diferenças), mas o problema é que a
política final da gestão Cardoso
não dá a essência do que foi o conjunto da política econômica daquele governo. Passou-se facilmente da tese dessa continuidade
(ela mesma incompleta), com a
política econômica final da gestão
anterior, à tese da igualdade entre
as duas. Afinal o PT não promoveu a privatização selvagem (criticada quase unanimemente quanto à forma e, ao que parece, desastrosa quanto ao conteúdo) a que
procedeu o governo anterior, que
era aliado do partido que melhor
encarna a direita, em termos políticos, e melhor reflete os objetivos
dos bancos, em termos de interesses econômicos, o PFL.
O que o governo petista fez foi
continuar as medidas que tomara
o antigo governo para evitar a catástrofe, ameaça pela qual esse
mesmo governo anterior parece
ter sido em parte o responsável. E
o fez também levando em conta
os efeitos da onda de terror ampliada pelos seus adversários.
Quero dizer com isso que a política econômica do PT se justifica.
Com todas as precauções que opinar em campo tão técnico exige
(Merleau-Ponty escreveu, aproximadamente, que para opinar em
política -eu diria, em política
econômica- é ser obrigado a falar de coisas a respeito das quais
os não-especialistas que somos só
podem ter evidências indiretas),
se a política econômica do PT era
justificável no primeiro momento, ela foi errada depois, porque se
imobilizou numa prudência excessiva.
Porém um erro desse tipo, erro
que, se ouso dizer, é certamente
de boa-fé, e que em parte tem raízes na herança econômica e política -inclusive o "terror"- anti-Lula deixada pela oposição (o tema da "herança maldita", de que
se abusou, tem alguma verdade),
não justifica de forma alguma o
termo pomposo e ultraviolento
de "estelionato político". Crê-se
seriamente que Lula e Palocci sejam "estelionatários", o que significa "escroques" da política? É dizer demais e mal.
Se esse é o diagnóstico que se deveria fazer da política econômica do
PT, o que dizer da
sua prática política (antes dos
acontecimentos
recentes)? Lula
eleito, e o PT não
tendo maioria absoluta, foi preciso
fazer alianças.
Com relação ao
problema das
alianças, observaria que é absurdo
supor, como supõe a extrema-esquerda, e por isso
sua crítica é estéril, que toda aliança com partidos
que não se apresentem como sendo de "esquerda"
seja a proscrever
(a observar "en
passant" entre os partidos e grupos ditos de esquerda há, por
exemplo, partidos neo-maoístas
ou grupos neo-stalinistas, o que
complica ainda mais o problema). Porém, também é falso afirmar que qualquer aliança é válida.
A meu ver, a propósito das
alianças seria preciso afirmar o seguinte. Alianças podem e nas condições atuais do Brasil têm de ser
feitas. Mas elas têm limites. Mais
precisamente, têm um duplo limite, que poderíamos tentar definir, apesar das dificuldades que
oferece, no caso, uma definição de
ordem geral. Há um limite politico e um limite ético. Sobre esses
dois aspectos, a regra deveria ser:
são vedadas em termos absolutos
as alianças com grupos, partidos
ou indivíduos claramente reacionários, ou notoriamente corruptos. Os dois advérbios são excessivamente vagos. Não tanto. Exemplos de alianças ilegítimas. Para o
primeiro caso, alianças com o
PFL, como a que fez o PSDB. Para
o segundo caso, alianças com certo político do PMDB paulista, como, há pouco, ameaçava fazer o
PT. Com os demais grupos, partidos e homens políticos, a validade
das alianças depende de quem se
trata e, se houver concessão recíproca, troca de "poderes", depende do que se oferece, do que se obtém, e das condições em que se
oferece e se obtém.
Fora os casos que assinalei, não
há regras absolutas. Cada caso é
um caso e deve ser julgado como
tal. Há suspeita de que o PSDB
praticou ações desonestas por
ocasião da reeleição de FHC. Isso
é muito grave, mas a partir daí
não dá para dizer que todo mundo no PSDB é corrupto e que toda
aliança com políticos filiados a ele
seja a proscrever. Depende de
quem se trata, das condições.
Considerando a situação anterior
ao presente episódio e limitando-nos ao problema específico das
alianças políticas (porque houve
pelo menos um "caso tenebroso",
ao qual irei me referir de novo, em
seguida), até a crise recente, pelo
menos na medida do que se sabe
até hoje, não creio que o PT tenha
feito nada de escandaloso no plano político nem
no plano da honestidade administrativa (falo
dos acordos e de
suas conseqüências), mesmo depois da vitória ou
que tenha traído a
si próprio, como
pretende a extrema esquerda.
Mas agora a situação se modifica. Estoura um
grave caso de corrupção. Trata-se
simplesmente da
desatenção de um
ministro, que se
enganou ao escolher um assessor?
Seria bom se fosse
apenas isso. Infelizmente, as circunstâncias nos
fazem pensar que
a gravidade é
maior. Esse não é o primeiro caso
suspeito que envolve gente do PT.
Houve pelo menos mais uma história grave, os fatos obscuros de
Santo André, que culminaram
com o assassinato do prefeito Celso Daniel. Há também as revelações de alguém que ocupara um
posto importante no Ministério
da Justiça, e que teria sido obrigado a sair por pressões vindas dos
altos escalões do governo.
A acrescentar, agora, a reação
desastrosa do PT, tentando pôr
panos quentes e se aliando com o
diabo para que, como se diz, tudo
termine em "pizza". E, "last but
not least", a atitude não menos
desastrosa do ministro Dirceu,
para o qual parece que nada aconteceu (uma pérola é a sua observação de que não tomou providências porque o próprio acusado já se encarregara disso...). Se
juntarmos tudo o que se sabe nesses casos e em mais alguns outros,
é difícil não concluir que, para
além dos acordos que se fizeram,
parece evidente que, nos bastidores, certos membros do PT enveredavam (e hoje visivelmente enveredam) por uma atitude comparável ao da política comum dos
partidos políticos brasileiros, isto
é, acham que ter abandonado o
"revolucionismo" significa aceitar eventualmente qualquer tipo
de aliança e, pelo menos, fechar os
olhos para práticas escusas. Essa
deriva vem assim de uma má leitura, se podemos dizer assim, do
que significa a mutação do PT,
mas também, como observei acima, e paradoxalmente, de um
apego a formas antigas (o "revolucionismo" não é sempre honesto). O PT tem que encarar seriamente esse problema, em vez de
concluir com alguns dos seus partidários, e alguns dos seus adversários, que as coisas são assim em
política.
Ou o PT procede a uma verdadeira análise de consciência, e
mais do que isso, a uma limpeza
geral das suas práticas, ou a gangrena, é preciso dizer, será inevitável. Assim, é inadmissível que
para evitar uma CPI, a qual, apesar dos riscos, deveria ser aceita,
ele se amarre, de pés e mãos, a
Sarney, a ACM, a Calheiros (e até
a Roriz). O tipo de compromisso
que se anuncia a partir do episódio da corrupção do assessor de
Dirceu, é extremamente perigoso
para o PT. O PT chega ao limite do
que pode ou, antes, do que não
pode um partido de esquerda. Lula não tem outra alternativa senão
a da substituição de Dirceu. Só essa medida pode provocar um "sobressalto" no partido.
Seria pretensioso demais fazer
propostas de programas ou de
projetos, mas ousaria assinalar alguns pontos. 1) Uma questão que
no momento parece secundária,
mas é na realidade essencial: o PT
deve tomar claramente distância
em relação a todos os governos tirânicos ou ditatoriais, inclusive
aqueles que se apresentam como
governos de esquerda ou revolucionários (Observe-se que os críticos de extrema-esquerda que reclamavam da falta de democracia
no PT não deram um pio a respeito. Nem, que eu saiba, os fundadores de novos partidos que se
pretendem socialistas democráticos. Pronunciar-se contra as antigas democracias populares é fácil;
quem seria a favor do câncer ou
dos acidentes de automóvel? De
resto, as tais "democracias populares" não existem mais. Quero
saber o que eles pensam das ditaduras "de esquerda" que subsistem.) O ministro hoje na berlinda
é um daqueles que parece ter mais
"fraquezas" nessa área -quero
dizer apenas que, contrariamente
às aparências, a indulgência para
com ditaduras "de esquerda" pode reforçar a indulgência para
com gente eticamente duvidosa.
2) O PT deve aceitar a idéia de
que, se alianças são necessárias,
há dois limites para elas, um limite político e um limite ético (ver
precisões mais acima).
3) O PT deve ter uma atitude absolutamente intransigente em relação a todos os casos de indulgência direta ou indireta para
com práticas desonestas, por parte de gente ligada ao partido ou ao
governo. A fortiori se houver mais
do que "indulgência". É preciso
complicar, não descomplicar as
coisas, para salvar o partido e o
governo. 4) É preciso rever a política econômica. As conversações
com o FMI tendentes a mudar algumas das regras dos acordos representam uma boa notícia, desde que levem a algum resultado.
Mas é preciso ter a coragem de
correr um mínimo de riscos, reduzindo a taxa de juros e tomando outras medidas que facilitem a
retomada do crescimento. Em
tempo, exigências de mudança da
política não devem servir de cortina de fumaça para encobrir percalços de natureza ética.
5) A curto ou médio prazo é
preciso pensar em medidas redistributivas. Que o governo tenha
empresários entre os seus ministros não é em si mesmo negativo.
Aliás, os ministros empresários, à
sua maneira, não têm andado
mal. Mas será necessário que eles
mostrem que são capazes de aceitar medidas redistributivas. Por
exemplo, uma tabela de alíquotas
do Imposto de Renda menos injusta para os menos ricos e que
exija mais dos mais ricos. Há projetos de importância a desenvolver, como as cooperativas.
Mas desde já é preciso buscar
uma saída clara para o impasse a
que nos condena, de um lado, a
"cara-de-pau" de raposas neófitas, e de outro, o narcisismo satisfeito de certos niilistas (refiro-me
só a uma franja dos que atacam o
governo) que escondem mal o
quanto se regozijam com a catástrofe, e o quanto são parte dela.
Ruy Fausto, 68, filósofo, professor emérito da USP, é autor, entre outras obras, de
"Marx - Lógica e Política" (Editora 34)
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