São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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NO PLANALTO

Decisão do STF dificulta defesa do erário

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A imoralidade é mais veloz do que todas as leis baixadas em seu nome. É assim desde Moisés, cujo código de leis, longe de melhorar a natureza do ser humano, ofereceu-lhe as primeiras dez idéias de perversão.
Na administração pública, as irregularidades são tão freqüentes que toda tentativa de governo termina por converter-se num ato de depravação. Está aí o ex-PT, que não nos deixa mentir.
Em 1992, aprovou-se uma lei (8.443) para tentar inibir a desenvoltura dos atentados contra o erário. Trouxe no parágrafo 1º de seu artigo 55 um estímulo ao engajamento social.
Estabelece que qualquer brasileiro pode denunciar impropriedades administrativas ao TCU sem que seu nome seja revelado. Desde então, 11.600 cidadãos protocolaram representações no Tribunal de Contas da União.
Não são denúncias anônimas. Estão formalizadas em documentos assinados. Contêm o nome e a qualificação do acusador. Dados que são mantidos em sigilo para evitar retaliações dos denunciados.
Mais de 50% das denúncias sigilosas revelaram-se verdadeiras. Resultaram na correção de centenas de malfeitorias. Inspiraram a aplicação de mais de 4.000 multas a gestores relapsos.
No dia 3 de dezembro de 2003, o STF decidiu que o mecanismo da denúncia sigilosa é inconstitucional. O veredicto produz efeitos nefastos. Brasileiros que confiaram na proteção legal encontram-se ao relento. Aconteceu assim:
1) em novembro de 2001, o advogado Pedro Duarte Neto encaminhou ao TCU denúncia de supostas irregularidades praticadas pela Diretoria de Portos e Costas da Marinha. Funcionário da repartição, Duarte Neto pediu a preservação de sua identidade. Foi atendido;
2) auditores do TCU puseram mãos à obra. Atestaram a veracidade do grosso das denúncias. Giravam em torno de convênio firmado com uma entidade chamada Femar (Fundação de Estudos do Mar). Envolve gastos superiores a R$ 4 milhões;
3) o convênio deveria contemplar atividades relacionadas ao "ensino profissional marítimo". Mas resvalou para a contratação imprópria de pessoal e de serviços;
4) verificou-se que, à sombra do convênio, contrataram-se os serviços do escritório de advocacia de um oficial da reserva da Marinha. A Diretoria de Portos e Costas, porém, possui assessoria jurídica própria. Não poderia, diz o TCU, servir-se dos préstimos advocatícios de terceiros;
5) contrataram-se também oficiais da reserva da Marinha para postos de gerência na repartição auditada. Emitiam recibos de autônomos, embora trabalhassem como funcionários efetivos;
6) terceirizaram-se atividades relativas a inspeção e vistoria de navios. A lei "não autoriza a concessão dessa atividade", diz o TCU. Deve ser executada por "oficiais da ativa" da Marinha;
7) despesas com passagens, diárias e hospedagem eram comprovadas mediante emissão de recibos. Não houve a apresentação de "documentos específicos" que atestassem a regularidade dos gastos;
8) parte dos dispêndios era "imprópria". A entidade beneficiária do convênio recebia indevidamente, por exemplo, valores a título de "taxa de administração". Tiveram de ser suspensos;
9) o relatório de auditoria do TCU anota que não foi constatada "má-fé" dos gestores da Diretoria de Portos e Costas. As falhas teriam decorrido da carência de pessoal. Uma responsabilidade do comando da Marinha;
10) em decisão de março de 2002, o plenário do TCU ordenou ao governo que providenciasse uma correção de rumos. Várias impropriedades foram revertidas ainda no curso das apurações;
11) a despeito dos benefícios proporcionados pela denúncia, o vice-almirante Euclides Ducan Janot de Matos, na época diretor de Portos e Costas da Marinha, requisitou ao TCU o nome do denunciante. Considerou-se ofendido em sua honra. Buscaria reparação judicial;
12) o TCU negou-se a dedurar Pedro Duarte Neto. A denúncia, disse, fora "legítima". O oficial Janot de Matos havia sido investigado "na condição de responsável pela gestão de recursos públicos, e não como pessoa física";
13) inconformado, o vice-almirante recorreu ao STF. E o Supremo ordenou, em dezembro de 2003, que fosse quebrado o sigilo do denunciante. Considerou inconstitucional o artigo da lei que lhe assegurava o anonimato;
14) em ofício endereçado ao STF, o TCU pediu a suspensão dos efeitos da decisão. Uma tolice. Certas ou erradas, sentenças terminativas do Supremo não comportam recursos;
15) o TCU informou no texto ao Supremo que "a declaração de inconstitucionalidade deixou à própria sorte os mais de 11 mil denunciantes" que confiaram na lei do sigilo. "A segurança física e jurídica desses colaboradores do Estado não deve ser esquecida. Nas cidades interioranas, denunciantes ficam à mercê das mais diversas formas de coação e de truculência";
16) em 9 de fevereiro de 2004, o TCU viu-se forçado a expedir certidão pública na qual informa o nome, o CPF e o RG de Pedro Duarte. Um dia depois, endereçou ao denunciante carta alertando que seu nome fora entregue ao vice-almirante Janot de Matos;
17) inspirados no precedente, dirigentes do TRE de Sergipe solicitaram ao TCU o nome do funcionário que denunciou a prática de nepotismo naquele tribunal. Uma denúncia que, como no caso da Marinha, também restou comprovada.
A decisão do STF golpeou de morte um mecanismo que, a despeito das imperfeições, auxiliava na proteção ao erário. Foi mais uma derrota da lei na corrida contra as perversões administrativas.



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